segunda-feira, 30 de novembro de 2009


Remember Rachel Corrie (1979-2003)

nenhum arado move a terra
com a ira do trator
(¿sem o sopro da ternura
quem sorve o dom da semente?)
há dias vi as fotos no jornal:
sozinho percorri a casa,
subi escadas,
abri janelas,
folheei o corpo encantado dos livros:
mas não acreditei no meu rosto
ao olhar o espelho.
perguntei
a mim mesmo:
¿que substância teria faltado
à tabela periódica?
¿que desencontro de átomos
deslocara nossas constelações?
Remember Rachel Corrie (1979-2003)
(Transladed by Paul Webb)


No plough should turn the earth
with the anger of that tractor.
Who dare enjoy the gift
of seeds unblessed by loving breath?
The photos have been in the papers for days.
I wander the house alone,
throw windows open,
climb stairs,
leaf through the enchanted pages of books.
I have lost faith
in my own questioning face.
What element is missing
from the Periodic Table?
What misalignment of atoms
has set the constellations so askew?
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P.s.: Rachel Corrie era uma jovem pacifista dos Estados Unidos. Foi esmagada por um trator, quando protestava contra a destruição de casas de palestinos pelo Exército de Israel. Repito o blog porque o porta-voz dogoverno de Israel afirmou que iria impedir outro navio carregando ajuda humanitária destinado à faixa de Gaza. Por coincidência, o barco irlandês tem o nome de Rachel Corrie.

domingo, 29 de novembro de 2009


The Guava (Psidium guayava)

Everardo Norões (translated by Paul Webb)

The guava on the branch
suggests an act of theft:
the attitude of a bow and arrow
& all the illusions
of Classical Physics.

A guava on the branch
lets down a ladder,
flings out ropes
into the beyond.

Yolky meteorite,
tossed before
our urge for greed.

Flying object
from afar,
the guava on the branch
itches us towards sin.
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sábado, 28 de novembro de 2009

El barranco

O conto El barranco, do escritor peruano José María Arguedas, datado de 1938, narra a morte de um bezerro que cai num abismo. Os vaqueiros retiram o couro do animal e o espicham no curral. Assim, a mãe, ao cheirar o couro do filho no momento da ordenha, continuará a dar leite.
Contei a história a Manuel, Nino de seu Dandão, de Taquaritinga do Norte, conhecedor de bichos. Ele me disse que nas redondezas faziam coisa parecida. Às vezes, lavam outro bezerro com o leite da mãe do que morreu; outras, ‘vestem-no’ com o couro do animal. A vaca acostuma-se ao cheiro e ‘adota’ o outro bezerro, como se fosse seu filho.
Não apenas a crueldade, mas também a arte de enganar parece intrínseca à natureza humana.
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quinta-feira, 26 de novembro de 2009


Manuscritos de escritores

Um pequeno filme da Biblioteca Nacional da França
tratando dos manuscritos de escritores,

P.s.: Na ilustração, manuscritos de Proust, Balzac, Apollinaire.
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quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Tempo das flores do café e do caju em Taquaritinga.
As abelhas uruçú voltaram a se agitar,
num baile difícil de se captar a coreografia...

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The Disappeared

Everardo Norões (translated by Paul Webb)

Their bodies did not yet number
among the ranks of the disappeared:
there were no bruises,
no blue blotches on the skin,
no cut lips,
no evidence of pus.
Their groans
were mere whispers:
martyrs’ leaves
kept behind closed walls.

There were no broken arm-bones,
no collar-bones corroded by acid,
in some far-off yard;
no supine corpses
uncovered for the camera lens.

Their bodies did not yet number
among the ranks of the disappeared:
their names were not yet etched
in the style they are now;
nor did newspaper pages
enwrap their silent memoirs.

(It was cold out
& pomegranates were not yet in season.
Bread and oil
on the table.
The bedside lamp
always on).
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quarta-feira, 18 de novembro de 2009


Nosso velho amigo Fred, o Padre Fred Solon,
foi embora no mesmo dia em apareceu
a primeira flor do pau-brasil de nosso jardim...
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segunda-feira, 16 de novembro de 2009


Três textos de Ivo Barroso

itinerários - I

Um caderno escolar com três escoteiros na capa, o do meio empunhando uma colossal bandeira do Brasil, me assegura que já em 1947 eu andava às voltas com a tradução de versos: Amado Nervo, Emile Lante, Siegfried Sassoon, o Anônimo Espanhol (“No me mueve, mi Dios, para quererte"), Baudelaire (“L´homme et la mer”) e... Shakespeare (nada menos que o soneto XXIX, When in disgrace with fortune and men´s eyes). Mas outras recolhas indicam que antes mesmo, em 1944-46, ousara encarar os célebres sonetos de Lupercio Leonardo de Argensola e de Manuel González Prada; e, fora do espanhol, houve uma curiosa "adaptação" das Feuilles Mortes, do então e hoje desconhecido poeta suíço Henry Spiess, e uma transposição do espanhol para o inglês, o poema Lazarus, do colombiano José Asunción Silva. O curto poema, cujo original espanhol só agora consigo recuperar, dizia assim:


Vem, Lázaro! – gritóle
el Salvador. Y del sepulcro negro
el cadáver alzóse entre el sudario,
ensayó caminar, a pasos trémulos,
olió, palpó, miró, sintió, dio um grito
y lloró de contento.
Cuatro lunas más tarde, entre las sombras
del crepúsculo escuro, en el silencio
del lugar y la hora, entre las tumbas
del antiguo cementerio,
Lázaro estaba sollozando a solas
Y envidiando a los muertos.
Recordo-me que fiz a versão para o inglês como trabalho de casa quando estudava na Cultura Inglesa com o professor Mullholand. Sem ainda ter lido Ezra Pound, andei operando uns cortes no original:

Come, Lazarus, come with me”,
said the Master. And the dead body
arouse up and began to walk
with shaking steps.
Looked, touched, smelt, felt,
and cried for happiness.
Four moons later, in the shadows
of the night, in the silence
of the old cemetery,
among the graves,
Lazarus was alone, sobbing,
fully envious of the dead.

Mullholand elogiou o trabalho e corrigiu duas frases:
Em inglês não se dizia “cried of happiness”, mas “cried for happiness”; e também não era “fully of envy of the dead” e sim “fully envious of the dead”.
Não conto essas coisas para me gabar nem exibir precocidade tradutória. Rimbaud aos 16 anos fazia versos em latim e há referências assustadoras e dissuasórias de feitos literários realizados em idades imaturas. Quero apenas imaginar que existe um certo pendor, uma inclinação para o traduzir que se manifesta desde cedo. Conheço pessoas, é verdade, que começaram a traduzir muito tarde, depois mesmo de terem realizado sua obra original. Mas o fizeram como uma espécie de hobby, de suplemento ao ócio, e não por aquela necessidade compulsória que move o tradutor orgânico. Nessa idade, o traduzir era um ato impulsivo.
Creio que cheguei à tradução como consequência lógica de minha abundante produção poética. Não me contentava em fazer três ou quatro sonetos e, quando a inspiração faltava, recorria aos versos alheios para supri-la. Era também a época ginasiana em que me encantava com o estudo das línguas e encontrava um fascínio na descoberta das palavras. Minha formação poética fora irregular e acronológica. Até os anos '40, vivi no interior, onde não havia biblioteca, e me satisfazia com os livros que encontrava, geralmente coleções compradas para enfeitar estantes. Em duas delas - Machado de Assis e Humberto de Campos, da Editora Jackson - desbravei os dois primeiros livros de poesia que li. Achei Humberto de Campos um poeta cultíssimo, íntimo dos deuses mitológicos e das passagens bíblicas. Fiz vários poemas sobre Ícaro, Galileu, Atalarico e outras personagens que ficara conhecendo de segunda mão. Meu primeiro soneto, O Pássaro Cego, publicado na Gazeta de Viçosa, em Minas, trazia uma epígrafe de H. de Campos, aliás inspiradora do poema. Mas tarde descobri Augusto dos Anjos e passei a pertencer à escola naturalista sem saber ainda o que era uma escola. Lembro-me de um professor meu “impressionado” com o soneto Vida, que ousei mostrar-lhe depois da aula, Vida, cujo começo era assim: "A Vida é o resultante grau da orgânica / Evolução da célula. É Energia que mais se apura dia para dia / Desde os tempos remotos da Era Oceânica”... Em seguida viriam outras fases: Bilac, Raul de Leôni, Menotti Del Picchia... Poesias “filosóficas” e amargamente amorosas, típicas da minha falta de experiência em ambas as lides.

Essa desordenada ânsia de leitura poética, que se extravasou de maneira igualmente desordenada para os poetas estrangeiros, é que coloco no cerne de meu anseio de traduzir. Digo anseio sem medo de crítica nem de pagar exagero. A satisfação de traduzir supria todos os outros interesses - sociais ou esportivos - que eu pudesse ter à época. Acordava cedo e ia para a Biblioteca Nacional ler e copiar poemas estrangeiros, pois não tinha respaldo econômico para adquirir os livros. Mas um - não me esqueço - comprei-o com o dinheiro de meu primeiro salário, em 1945: A Rosa do Povo, que li perplexo. Essa preciosidade, essa primeira edição “histórica”, perdi-a por ter emprestado o livro a alguém. Lição número um: nunca empreste livros.

itinerários - II

Para voltar ao mencionado caderno do escoteiro, datado de 1947, dali copio a primeira versão do Soneto XXIX, de William Shakespeare, tentada em alexandrinos:


Quando, longe da vista humana e da fortuna,
Choro, triste e sozinho, ao ver-me desterrado,
E o surdo céu meu pranto inútil importa,
Eu olho para mim a maldizer meu fado,

Querendo ser alguém mais rico de esperança,
Parecer com esse alguém, ter amigos serenos,
Desejando-lhe a sorte, os intentos que alcança,
E, do que mais aspiro, estar contente, ao menos;

Ainda, nesse pensar, quase me desprezando,
Recordo-me de vós, retorna-me a alegria
E ponho-me feliz, como a calhandra, entoando

Hinos ao claro céu, cá da terra sombria;
Pois só de em vós pensar, tão rico me fazeis
Que o meu destino, então, não dou pelo de reis.

Vali-me de uma ou outra solução dessa antiga ousadia para reelaborar o soneto em decassílabos:

Se, órfão do olhar humano e da fortuna,
Choro na solidão me pobre estado
E o céu meu pranto inútil importuna,
Eu entro em mim a maldizer meu fado ;

Sonho-me alguém mais rico de esperança,
Quero feições e amigos mais amenos,
Deste o pendor, a meta que outro alcança,
Do que mais amo contentado o menos.

Mas, se nesse pensar, que me magoa,
De ti me lembro acaso – o meu destino,
Qual cotovia na alvorada entoa

Da negra terra aos longes céus um hino.
E na riqueza desse amor que evoco,
Já minha sorte com a dos reis não troco.

Nos anos '50 já devia ter uns quatro ou cinco prontos, com os quais obtive uma espécie de passe livre nas páginas do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, sob a égide de Mário Faustino e Reynaldo Jardim. Entre esses quatro, recordo-me que estava o LXXI ("Não lamentes por mim quando eu morrer"), que me granjeou a simpatia de Manuel Bandeira.

A fase de trabalhos sistemáticos, no sentido de traduzir um considerável número de sonetos, só ocorreu na Holanda, nos anos 1968/70, onde me deparei, pela primeira vez, com a coleção completa dos 154, numa edição bilíngüe (inglês/neerlandês), traduzidos por W. van Elden, que a minha timidez não me impediu no entanto de conhecer. Foi com a tradução de seu prefácio que passei a ter consciência das dificuldades a que se expunha, em qualquer língua, quem intentasse traduzir os sonetos shakespearianos querendo manter-lhes o ritmo, os jogos de palavras, as polissemias e duplos sentidos, o vocabulário ora erudito ora popular, a riqueza de ambientes, cores, tons, sem falar nas metáforas peculiares e nos recursos formais que funcionam como elementos gestálticos. Diz van Elden: “Shakespeare conseguiu extrair da forma soneto tudo o que ela poderia dar. Por meio de infinitas variações métricas e do uso de todos os recursos poéticos, como aliteração, rimas internas, antíteses, repetições e trocadilhos, logrou um resultado quase inatingível. E tudo isso com tal facilidade e naturalidade que os recursos técnicos podem até passar despercebidos a quem não procurá-los expressamente”. O clima neerlandês terá certamente contribuído para a obsessão de “trabalhar” a tradução dos sonetos até conseguir preservar a maior parte possível de seus elementos, a manutenção da ordem das proposições, os recursos estilísticos, sem abrir mão de seu trânsito poético pelo território da língua portuguesa. Outro caderno, já dessa época, na verdade um bloco de notas (100 vel prima houtvrij schrijfpapier met lijnen), atesta a quantidade absurda de tentativas de transposição de um único verso, como o inicial do soneto I (From the fairest creatures we desire increase) com suas duas aliterações sucessivas (em fr e em cre) até chegar ao equivalente "Dos seres ímpares ansiamos prole" (se/si e pa/pro), pois ora se obtinha a aliteração mas havia a discrepância da rima, ora aquela não se encaixava na métrica, sem falar na recusa permanente aos circunlóquios ou transposições.
Da Holanda trouxe 24 sonetos que, revistos, foram editados pela Nova Fronteira num livro de luxo destinado a bibliófilos, em 1973. Numa segunda estadia na Europa, dessa vez com passagem pela Inglaterra, a obsessão continuou, acrescida então de bom número de instrumentos críticos, com o intento de se elevar o número de peças traduzidas para 30 com vistas a uma edição comercial que veio à luz em 1991. A essa altura, já havia o convívio com edições integrais de renome, como a Oxford (ed. W. J. Craig) e a Pelican (ed. Douglas Bush) e a frequentação de autores fundamentais como Stephan Booth, W. G. Ingram e Theodore Redpath, John Dover Wilson, Kenneth Muir, Robert Giroux e A. L. Rowse, com suas notas e comentários elucidativos, além de estabelecimentos de texto. O precioso livrinho Shakespeare´s Wordplay, de M. M. Manhood, mostrava as intenções ocultas e as sutilezas verbais que certamente escapariam sem a sua ajuda. E da joia rara, aquela cujas notas representavam uma espécie de bíblia-guia dos Sonetos – procurada em todos os grandes alfarrabistas de livros raros por onde andei – A New Variorum Edition – e que só fui conseguir em cópia xerográfica na Biblioteca Real de Estocolmo nos fins dos anos '80. Houve também a obsessão de examinar o maior número possível de traduções, principalmente as francesas, a partir da de François Victor Hugo, que já conhecia desde o Brasil. Mas a França me reservou uma grande decepção na pessoa de Henri Meschonnic, incensado professor da Sorbonne, com seu livro Poétique du traduire (Verdier, 1999), em que arrola e critica impiedosamente oito traduções francesas do soneto XXVII ("Weare with toil, I haste me to my bed"), num período que vai de 1887 a 1992. Depois de detonar todos os seus antecessores, Meschonnic apresenta a sua versão, que, longe de ser perfeita, nada tem de poética, além de passar voando por sobre o magnífico jogo de palavras do 4° verso, em que Shakespeare brinca com as nuances de work como verbo e como substantivo (To work my mind, when body´s work expired). Nem sempre o conhecimento teórico assegura a realização poética...

itinerários III

ESCORREGÕES

A tradução tem muito de malabarismo, ou melhor, de caminhar na corda bamba. Você se arrisca a escorregar e cair a cada passo e, mesmo que tenha conseguido chegar quase ao extremo da corda (ou do texto), o escorregão é sempre um desastre, a queda uma escoriação no seu ego. Talvez seja por isso que os tradutores temem, em especial, os falsos amigos - essas palavras que nos parecem familiares, iguaizinhas às nossas, mas que, na verdade, constituem uma tremenda casca de banana no caminho do escorregão. Só para citar algumas muito manjadas: você vê a palavra “oso” em espanhol e – zás! – escreve “osso” em português, quando na verdade devia escrever “urso” (não se trata de um exemplo aleatório: encontrei esta na tradução de um poema feita por notório conhecedor da literatura hispano-americana); aparece em inglês “casualty”, pedindo para você traduzir por “casualidade”, mas – ledo engano! – a palavra ali tem o sentido de “vítima”, “baixa”, “morte” etc. Recentemente vi numa tradução do francês que as pessoas estavam sentadas de “tailleur”, e estranhei, pois não havia mulheres em cena; mas logo atinei com o sentido: o original devia ser “assis en tailleur”, uma expressão idiomática que significa “sentados de pernas cruzadas” (à maneira oriental – a cena se passava no Japão). Poderia continuar citando os faux amis (como as chamam em francês), ou deceptive cognates (em inglês) que abundam igualmente no italiano, língua em que você pode pensar que “un uomo sbigottito” seja um cara sem bigode, ao passo que ele está apenas assustado. O leitor interessado pode encontrar uma boa lista dessas palavras traiçoeiras no livrinho A Arte de Traduzir, de Brenno Silveira, o beabá do tradutor iniciante, que li com profunda veneração quando comecei a decifrar hieróglifos e buscava alguma base teórica em que pudesse me apoiar. Com ele aprendi o grande princípio do apostolado da tradução: a fidelidade ao texto. Mas meu propósito é outro. O que estou tentando dizer é que irremediavelmente o tradutor está sujeito a um escorregão dessa natureza e será miraculoso malabarista aquele que nunca resvalar. O grande Agenor Soares de Moura, em seu livro À Margem das Traduções, mostrou que mesmo escritores consagrados estão sujeitos a uma bobeira num momento do traduzir. Mas isto não ocorre só entre nós. Wyatt Mason, scholar norte-americano, especialista em Rimbaud, de quem traduziu a obra completa, deslizou feio num trecho das cartas do poeta de Charleville. A frase em francês era a seguinte: “Entrer à Geldessey à 10 ½. Les porteurs se mettent au courant, et il n´y a plus à souffrir qu´à la descente de Ballaoua”. Para bom entendimento, é necessário esclarecer que se trata de uma anotação feita pelo poeta, com a perna gangrenada, ao ser transportado para um distante hospital numa liteira por dezesseis carregadores que não conheciam bem o caminho. A tradução seria aproximadamente: “Chegada a Geldessey às 10 ½. Os carregadores vão se inteirar das dificuldades: não são maiores que as da descida de Ballaua”. Hyatt deu o passo em falso e traduziu: “Enter Gueldessey at 10:30. Bearers begin to run, and no suffering until the descent from Ballaoua”. Leu “se mettent au courant” (põem-se ao corrente) por “se mettent à courir” (põem-se a correr). Pobre Rimbaud, inválido e ainda vendo os seus carregadores abandonando o cargo (ou a carga)...

Eis a minha escorregadela histórica. Tive a satisfação de trabalhar com um grande, excepcional tradutor, Dr. Elias Davidovitch (que me confessou também haver alguma vez escorregado e me citava Quandoque bonus dormitat Homerus). Ele dirigia uma enciclopédia judaica e me dava verbetes para traduzir do inglês. Num deles havia um rabino tão pobre que tinha de pedir emprestado o relógio aos seus vizinhos para ir à sinagoga. Imaginei que fosse um despertador, acordando o rabino de madrugada para sua função religiosa. Dr. Elias se divertiu bastante com a minha tradução e aconselhou-me a colocá-la num quadro. “Assim você nunca mais se esquecerá!” Na verdade, o que os vizinhos emprestavam ao rabino era um casaco para abrigá-lo do frio, pois sendo muito pobre nem agasalho tinha. Eu lera “clock” em vez de “cloak”.

Arrisco-me a soar um tanto professoral, ou pior ainda, paternal. Mas estas palavras vão para aqueles tradutores primitivos, que estão à cata de seus primeiros trabalhos, mas que acham – como eu na época – que já dominam o métier. O tradutor precisa não de um casaco emprestado como o do rabino, mas exatamente de um relógio, de um mecanismo de advertência. Ler sempre com atenção, não deixar passar nunca uma palavra cujo sentido não conheça ou que não tenha checado, desconfiar de situações esdrúxulas, de frases incompreensíveis, de palavras sem sentido. Assim seu erro eventual pode se transformar nesse aparelho imprescindível ao tradutor: o desconfiômetro.#
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P.S.-Estes textos do poeta e tradutor Ivo Barroso foram publicados no site de Denise Bottmann, Não gosto de plágio (http://naogostodeplagio.blogspot.com/).
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domingo, 8 de novembro de 2009


O dente-de-leão

Filho de um pintor,
seu maior desejo era tornar-se músico, maestro.
Mas teve que estudar filosofia para ser professor e ganhar a vida.
Um dia, deitou-se no campo, perto da linha Maginot,
linha de fortificações edificada nos anos 30,
na fronteira da França com a Alemanha.
Queria apenas contemplar a natureza.
Mas, de repente, viu-se fascinado
ao observar uma flor estranha, uma flor-estrela,
o dente-de-leão,
que os franceses chamam pissenlit.
A forma complexa da taraxacum officinale
levou-o a refletir sobre a reprodução sistemática de certas estruturas.
Logo depois, viria ao Brasil,
onde manteve contato com algumas tribos indígenas:
Bororós, Caduveos, Nambikwaras.
Registou tudo:
desenhos corporais, falas, mitos, músicas, culinária,
estruturas de parentescos...
Tornou-se um dos homens mais conhecidos do século XX.
Suas idéias invadiram quase todas as áreas do saber.
Deixou-nos há poucos dias,
com 100 anos de idade.
O rapaz do dente-de-leão se chamava
Claude Levy-Strauss.
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terça-feira, 3 de novembro de 2009

Movimento de cordas nos rebocadores
Lucila Nogueira

Movimento de cordas nos rebocadores
hora européia de um caleidoscópio de brumas
dedos como submarinos entre sargaços
não é tão longe
de Babilônia a Jerusalém

Cidade-cais de Saint-Nazaire
o atracar e largar de navios
movimento lento em água parada
horizonte indefinido no Loire
varanda entre os andaimes e guindastes
êxtase inesperado das embarcações

Eu sou aqui somente uma estrangeira
e trago a marca da casualidade
eu sou a transeunte forasteira
e assim como cheguei devo partir

Eu sou aqui somente a passageira
e por mais que me entregue
permanecerei alheia
por mais que te queira eu sou farouche
e esta cidade é só o meu percurso
fosso muralha ponte e sentinela
assim como cheguei devo voltar

Ninguém acenará para mim
de qualquer janela
quando eu me for
cais platônico de mim
dimensão metafísica do sonho
cais metáfora do corpo passaporte
somos nós os navios desta noite
cais invisível da ressureição

P.S. Relendo a A quarta forma do delírio, de Lucila Nogueira, reencontrei esse belíssimo poema...

Bebendo sozinho sob a lua


Li Po (701-762)


(tradução da versão francesa de François Cheng)

Entre as flores, um pichel de vinho.
Sozinho a beber sem companhia
Levantando minha taça, saúdo a lua:
Com minha sombra, somos três.
No entanto, a lua não sabe beber;
É em vão que a sombra me segue
Honremos, entretanto, sombra e lua,
A alegria dura somente uma primavera!
Eu canto e a lua flana,
Eu danço e minha sombra se diverte.
Despertos, nos regozijamos,
E ébrio, cada um segue seu caminho...
Reencontros na Via Láctea:
Nunca mais, caminhadas sem apego!

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A ilustração é uma caligrafia de Li Po.
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