sexta-feira, 30 de abril de 2010


REVISTA CRISPIM
A necessária reprodução do esquecimento:
conversa com Everardo Norões


(Cristhiano Aguiar)

Uma das vozes de maior destaque na poesia brasileira contemporânea, o poeta cearense, radicado em Pernambuco, Everardo Norões, acaba de lançar um livro novo: Poeiras na réstia, publicado pela editora 7letras. Em conversa exclusiva para a Crispim, por e-mail, Everardo fala um pouco das relações entre poesia, política e contemporaneidade.



1) Everardo, algumas vezes conversamos sobre sua experiência como exilado político, durante a ditadura militar. Sem dar nomes, claro, como você via a atuação dos poetas, tanto em Pernambuco, quanto em outros estados, em relação ao regime?

O poeta deve enxergar o núcleo escuro do mundo, o lugar de onde vem a lava incandescente que nos queima e, contraditoriamente, nos alimenta. Outro dia, lendo um texto do filósofo italiano Giorgio Agamben, fui tocado pela maneira como ele observa o conceito de contemporaneidade. Ser contemporâneo, segundo ele, é aderir ao seu próprio tempo, enquanto, simultaneamente, nos distanciamos dele. É como se estivéssemos na claridade e olhássemos também o lado escuro das coisas. Como se tivéssemos sempre à mão um caco de vidro esfumaçado para observar o eclipse. A partir daí, é possível concluir que ser contemporâneo é diferente de ser ‘atual’. Ser atual remete a uma concepção linear do tempo. Mas nossa relação com o tempo é dialética: aderimos a ele; ao mesmo tempo dele fugimos, pois somente nessa fuga podemos senti-lo na sua plenitude.
Temos de ter uma noção dessa totalidade para não observarmos apenas um pedaço do caminho. É por isso que toda grande poesia é política, pois acaba por exprimir uma visão necessariamente crítica.
O exílio é uma espécie de troca de mundos. Você não precisa sair do Brasil para se sentir exilado. Quando você troca de mundo, você guarda um referencial que lhe permite fazer comparações, olhar com mais objetividade os retalhos de sua vida que ficaram para trás, comparar acontecimentos. Ou seja, você tem mais possibilidade de afiar sua visão crítica. Isso não significa, no entanto, que basta você ser exilado ou ter morado em outro lugar para adquirir essa percepção das coisas. Fábio Andrade escreveu uma matéria sobre meu penúltimo livro na qual faz uma observação interessante. Escreveu, salvo engano, que os caminhos da memória são reinventados continuamente, assim como a tradição também deve ser reinventada. No livro do escritor estadunidense Philip Roth (vamos adotar essa apelação, já que americanos somos todos nós...) ele entrevista outro escritor, que eu nunca li, chamado Aharon Appelfeld. E o entrevistado diz alguma coisa parecida: a memória é apenas um elemento menor no processo criativo, a criação é uma criatura independente. O exílio também pode ser social e talvez essa seja uma explicação pelo fato de Pernambuco ter tantos poetas...
Outra vantagem da circunstância de ser exilado é alcançar forças para colocar em questão os cânones ou para romper as peias da tradição. O último livro de Ronaldo Correia de Brito, Galiléia, a meu ver, deve ser lido sob esse prisma. O ‘sertão’ de Galiléia (coloco de propósito entre aspas) não é mais sertão. É como no Azulão, de Manuel Bandeira. Nosso sertão acabou. As relações mercantis (falo aqui das relações mercantis do capitalismo selvagem, não daquelas das gerações passadas) destruíram boa parte do que muita gente ainda continua a cultuar, como se a sociedade fosse imutável. Ora, a própria Igreja católica está em vias de desaparecimento, pelo menos naquela forma institucional em que a víamos, com padre, coroinha, sacristão...
Walter Benjamin escreveu uma espécie de parábola, que consegue resumir tudo isso. Está incluída no texto sobre seu conceito de história. Fala do angelus novus, um anjo que ele observou num quadro de Paul Klee. O anjo olha fixamente alguma coisa que ficou para trás, para um passado. Enquanto acompanhamos os acontecimentos, o anjo vê apenas a catástrofe e, conforme escreve Benjamin, quer acordar os mortos, juntar os pedaços dos escombros. Ao mesmo tempo, uma tempestade sopra do paraíso, abre as asas dele com força e o lança em direção ao futuro, amontoando ruínas que atingem o céu. Essa tempestade, segundo Benjamin, chama-se progresso. Ora, quem venera a tradição, teme a tempestade. Ficará imobilizado, a contemplar as ruínas...

2) Me parece, inclusive, que uma parte da nossa arte e literatura atuais parece estar imobilizada nestas ruínas. Muitos poetas e artistas criam tentando resgatar uma função “salvadora”, “revolucionária”, da arte. Por outro lado, vejo também, principalmente na poesia brasileira hoje, um certo fetiche pelo vanguardismo! Há uma cobrança de experimentalismo, a ponto de poetas de forma mais “contida” serem chamados de “caretas”. É reacionário escrever um soneto? Você acha que os beletristas do século XXI são aqueles que não conseguem sair das ruínas das histórias das vanguardas?

Hoje há muitos poetas ‘sociais’, ‘engajados’. Na conhecida época de chumbo, poucos poetas se manifestaram de forma clara. Um deles foi Alberto Cunha Melo. Para mim, Noticiário foi seu livro de grande impacto. Logo que voltei da África, recebi um exemplar desse livro, um presente do poeta Orley Mesquita. Há algum tempo atrás, Alberto e eu nos encontramos na Biblioteca Pública e eu lhe disse de minha preferência por Noticiário. Ele concordou. Seu poema sobre a seção de obras raras estava na sala onde trabalhava naquela Biblioteca. Deveria ser distribuído e afixado em todas as salas de leitura. Mas Alberto é um poeta importante não apenas porque sua poesia teve força de denúncia, mas pela maneira original como essa denúncia é posta.
Não procuro fazer poemas ‘políticos’. Quando escrevo que as ruas com nomes de coisas são mais humanas, como o poema “Estátuas”, de meu penúltimo livro, Retábulo de Jerônimo Bosch, penso que há uma ‘leitura’ a ser feita em torno dos significados. Um poema pode ter uma conotação política mais forte sem adotar um discurso marcadamente contestatório. Hoje em dia a poesia deve denunciar de forma original a ‘racionalidade’ que transformou o ser humano em mero homo oeconomicus, uma ‘mutação antropológica considerável’, para usar a expressão de Cornelius Castoriadis. A crise que está sendo apregoada [a entrevista foi realizada em janeiro de 2009] - será que não vivemos constantemente em crise? - vai colocar novamente em questão certos paradigmas. Antes de qualquer coisa, deveríamos nos perguntar: isso também não ocorreu em 29? E por que depois houve uma Segunda Grande Guerra? E por que logo tudo foi de novo ‘esquecido’? É que a lógica da racionalidade capitalista tanto funcionou em Auschwitz como funciona em Israel; tanto funciona para o kit eletrônico previsto para ser consumido em determinado tempo - um computador, por exemplo - como para os armamentos sofisticados usados na Guerra do Iraque. O esquecimento, o esquecimento histórico, é uma necessidade para a reprodução desse paradigma. Para quem escreve ficção ou poesia, o que nos cabe é inventar formas que desmascarem essa ‘racionalidade’ e inscrevam o ser humano em outra dimensão, na qual o sensível de sua natureza essencialmente criadora possa se manifestar.
Observo que muitos escritores da nova geração têm uma atitude de respeito profundo para com a literatura. O que significa isso? Que não se contentam com o brilho da novidade e estudam atentamente as transformações do mundo das letras com a rapidez e a leveza que o novo século passou a exigir. Acho que ao fazer assim, permanecem atentos ao símbolo com o qual Italo Calvino saudou o novo milênio: “o salto ágil e imprevisto do poeta-filósofo que sobreleva o peso do mundo, demonstrando que sua gravidade detém o segredo da leveza, enquanto aquela que muitos julgam ser a vitalidade dos tempos, estrepitante e agressiva, espezinhadora e estrondosa, pertence ao reino da morte, como um cemitério de automóveis enferrujados”.

3) Como o poeta deve se posicionar em relação às pautas do seu tempo?

Há poetas entre nós que sempre se posicionaram em relação ao seu tempo, sem nunca descuidarem da forma, da síntese forma/conteúdo. João Cabral de Melo Neto, embora nem fosse militante político, foi o mais contemporâneo. Ele e Joaquim Cardozo foram, a meu ver, os dois grandes poetas brasileiros do século que passou. Um grande problema para os poetas de nossa geração foi tentar se desvencilhar das influências deles, sobretudo a de João Cabral - porque Joaquim Cardozo foi muito pouco divulgado. A grande poesia de João Cabral não é a que tem conotação mais abertamente política, como Morte e Vida Severina, mas os poemas sobre alguns toureiros, os da educação pela pedra, aqueles que rompem, de certa forma, com os cânones da poesia tradicional. Ele assume o lado ‘feio’ do poema, sem a chatice do violão de rua ou do poema sujo.
João Cabral e Joaquim Cardozo não são poetas ‘brasileiros’ ou ‘pernambucanos’. São poetas universais. Costumamos insistir na ‘pernambucanidade’ de João Cabral. Deveríamos, isto sim, dar como exemplo sua ‘universalidade’. Atribuir essa ‘pernambucanidade’ a um poeta como ele é apenas uma tentativa conservadora de recuperar e, ao mesmo tempo, amesquinhar, sua grandeza. Lembro que ele viveu muito tempo na Espanha, onde ainda hoje é reverenciado. Em plena ditadura franquista, sua casa em Barcelona foi uma espécie de guarida para intelectuais do porte de Joan Miró, Joan Brossa ou Angel Crespo.

(Cristhiano Aguiar)

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quarta-feira, 28 de abril de 2010



O livro do sapateiro

Surpreende O livro do sapateiro, que acaba de ser publicado, do poeta português Pedro Tamen. Adquiri-o por recomendação de Luis Patraquim, outro poeta. O autor escreve como se ele próprio fosse o sapateiro, ‘sentado no curto escabelo’, frente à janela, acompanhado “de quem não passa”. Ele que tem a pele da mão direita mordida pela vida, a dar uma “nova liberdade” a outras peles curtidas em serras e bosques. Faz pensar nos sapatos ou no boi de outro poeta, Mauro Mota. Mas, no caso de Pedro Tamen, o boi não é o objeto do poema, mas pretexto para valorizar a mão, o manual, manufatura ou artesania (palavra ausente de nosso dicionário, mas que prefiro a 'artesanato'). E quem não se recorda da artesania do ferrageiro de João Cabral? A mão, aliás, é palavra repetida à exaustão em quase todos os 49 poemas do livro. A desvalorização do ofício manual, ou daquilo que se supõe ‘vidas minúsculas’, tem nesse livro do poeta português uma resposta à altura, como a que lemos também nos romances de um Pierre Michon. “Acocorado como estava o escriba/ só não escrevendo...”, lê-se no livro. Para mim, uma das leituras mais interessantes dos últimos tempos.
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P.S.A ilustração de fundo é do artista plástico Hélio Jesuíno.
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sábado, 10 de abril de 2010

CONTRA O PLÁGIO

Enviei e-mails a todas pessoas que conheço, lembrando a necessidade de assinarem o manifesto de protesto ao processo movido por editoras contra Denise Botmann. O manifesto já reuniu quase 3.000 assinaturas e continua aberto até o dia 10 de abril. Para assiná-lo, acessem:

http://www.petitiononline.com/Bottmann/petition.html

Sobre o assuntom a Área Didática de Tradução do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em reunião realizada no dia 29 de março de 2010, decidiu:

“Considerando ser a liberdade de expressão, além de um direito, um dos bens mais preciosos da democracia,
Considerando ser a atuação da colega Denise Bottmann em defesa dos tradutores e das traduções legítima e necessária, e
Considerando o atual processo movido pela Editora Landmark por danos morais e materiais causados pelas ações da tradutora e historiadora, e que pede, inter alia, a imediata remoção de seu blog da Internet “Não Gosto de Plágio” (http://naogostodeplagio.blogspot.com/),
Manifesta seu apoio unânime a Denise Bottmann em sua luta contra o plágio de traduções e a consequente desvalorização, não apenas da figura do tradutor, mas de todo o princípio do direito autoral e da propriedade intelectual.”


http://naogostodeplagio.blogspot.com/
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segunda-feira, 5 de abril de 2010


As aberrações do “Direito de Imagem"

Alexei Bueno

O recente episódio do processo intentado contra a Editora Aprazível, em seu livro sobre o fotógrafo José Medeiros, em que representantes legais dos herdeiros de Manuel Bandeira, em verdadeira aberração postulatória, reivindicaram – e ganharam em primeira instância – o direito a retirar de circulação um livro imenso, no meio do qual há uma foto do poeta, em meio a outras pessoas, e ainda receberem indenização, é um marco do ponto a que chegou a aberração do infame conceito de “direito de imagem”, que transforma grandes figuras da nacionalidade, homens de imagem pública e notória, que como homens públicos voluntariamente viveram, em algo como marcas de roupas e refrigerantes.

Antes disso outra aberração, talvez ainda maior, foi intentada contra os proprietários do belo curta metragem “O poeta do Castelo”, realizado por Joaquim Pedro de Andrade e produzido por Fernando Sabino. Sem sequer entrar no mérito de que Manuel Bandeira nem viúva deixou, nem filhos teve, é bom lembrar que Joaquim Pedro era filho de seu maior amigo, Rodrigo Melo Franco de Andrade. Quando o poeta acedeu ao desejo do jovem cineasta de ser retratado em seu curta, ele obviamente doou a sua imagem, a sua participação, ao cineasta. Reivindicar “direito de imagem” sobre esse curta-metragem, mais de quatro décadas depois, é mais ou menos como se algum sobrinho do saudoso Maurício do Valle processasse os herdeiros de Glauber Rocha por sua participação nos quatro filmes do genial cineasta em que ele atuou. Há um princípio jurídico de grande importância, o da razoabilidade, que está sendo atropelado por todas essas aberrações. E mais: um sinal óbvio de civilização são os limites à propriedade, em nome do bem comum, inclusive o bem cultural. Maior exemplo não existe do que o tombamento. Se Ouro Preto não tivesse sido declarada Monumento Nacional nos anos de 1930, todas as suas casas seriam hoje cubos de concreto, com janelas basculantes de vidro blindex! Se há limites de propriedade para os bens físicos, por que não os haveria para bens imateriais, como as obras literárias, às vezes de muito maior importância?

O chamado “direito de imagem” representa a própria morte da cultura. Como, numa foto coletiva, às vezes com dezenas de pessoas, não se expor, ao publicá-la, à ânsia argentária de algum sobrinho-bisneto de um grande homem? Uma jurisprudência sórdida está sendo criada. E o pior, enquanto o direito à obra literária chega a 70 anos após a morte do autor, esse conceito vago de “direito de imagem” – que não significa nada e pode por isso mesmo significar tudo – não tem prazo de validade! O autor destas linhas, por exemplo, é 11º neto do célebre Anhanguera. Juridicamente, quem sabe, poderia processar algum livro didático que reproduzisse um retrato supositício de seu antepassado, morto há mais de três séculos! Como poderão trabalhar dessa maneira os críticos, os iconógrafos, os antologistas, os documentaristas?

E para escárnio maior, os responsáveis por tais processos dizem querer proteger Manuel Bandeira dos “aproveitadores”, que devem ser, provavelmente, os falecidos Joaquim Pedro de Andrade, José Medeiros e Fernando Sabino, ou os excelentes editores do livro sobre José Medeiros. Até onde vai tudo isso? Se para bens físicos pode haver o tombamento ou a desapropriação, nada se pode fazer em relação a imagens públicas de homens públicos? Pode a cultura de algum país civilizado ser entregue à chicana dos rábulas, descumprindo de forma evidente o que seria a vontade dos autores, se vivos fossem? Onde fica a razoabilidade? Onde fica a cultura brasileira em tudo isso? Entregue aos rapaces ou às mediocridades ávidas de exercer poder? Que este texto sirva como um manifesto, a conclamar todos os que trabalham com e pela cultura no Brasil.
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Esta matéria foi publicada no blog de Helio Jesuíno, de quem é tambám a feliz ilustração:



Um certo Padre Gomes

Everardo Norões


Dez horas da manhã.
Na sala de aula, duas altas janelas cortam
o claro dos céus em pedaços.
O professor profere a chamada.
O verbo é ‘proferir’; ele nunca chama: ordena.
Ele é padre, mas nada tem a ver com seus pares.
Basta ver o corte da batina, a faixa à cintura
que mais parece um obi de samurai.
Postura de quem está sempre à espreita,
aguarda o ataque.
Pronuncia os nomes, não os repete; olha a cara de cada um,
baixa a vista para o livro de anotações, escreve.
O que contam esses registros?
Depois, se não aprova o nominado,
ele o dispensa antes do início da classe.


(Comenta-se que presa à faixa não há uma katana,
o sabre japonês, mas um Smith&Wesson .38 duplo.
Única concessão que faz ao império do Tio Sam.)



Assim fala a fotografia:
cinzento é o ginásio na sua arquitetura cansativamente simétrica,
corredores de piso de mosaico, campainha para retinir recreios,
sanitários malcheirosos a lançarem seus eflúvios
sobre o amplo pátio.
O pátio:
um quadrado de terra vermelha,
onde nenhuma grama cresce, como no chão de Átila.
Às 5h30 da manhã, e durante uma hora a fio,
os alunos, na aula de educação física, aqui são tratados
como cabos de guerra pelo sargento do Tiro.
A cor da argila designa o bairro do Barro Vermelho,
lugar onde foi fuzilado Pinto Madeira, pertinho daqui.
Ainda se busca a mancha de sangue, o buraco da bala,
o sopro da última palavra.
Inútil:
tudo aqui foi destruído:
a rua de azulejos portugueses,
a calçada dos morféticos,
o piano que ressoava na rua
as lembranças de Branca Bilhar.


(A cidade conspurca com crueldade seus espectros.)



Ao lado do retângulo vermelho, a dita sala, igual a vinte outras,
com seus trinta alunos sentados em carteiras de madeira de lei.
Numa delas, as duas iniciais de um nome;
em outra, um signo-salomão, uma meia-lua ou um ferro de gado.
Nada de sugestões pornográficas ou insinuações subversivas.
Ninguém se iluda:
neste reduto da diocese não apenas se aprendem
as matérias do currículo:
aqui também se é iniciado no exercício da delação.


A aula começa.
O professor comenta a diferença entre os homens do interior
e os que ficaram pelos litorais,
a arranharem a terra como caranguejos,
dixit Frei Vicente do Salvador, ou Vicente Rodrigues Palha,
nome laico do jesuíta baiano que descreveu a vida na Colônia.
A linha de pensamento do mestre se insinua
pelos meandros do rio São Francisco.
É regida pelas observações do mais brilhante historiador
de seu tempo, Capistrano de Abreu, ateu e, para seu desgosto,
pai de uma freira que se refugiou no claustro
e fez voto de silêncio.



O curso do pensamento do professor acompanha
o do Grande Rio, desemboca no Riacho da Brígida.
Busca um Ulisses,
entre preadores de índios da Missão do Miranda, ex-Itaytera.
Um Ulisses capaz de conservar engastado o rochedo
sob os pés da Virgem da Penha,
para impedir que a Serpente não o rompa
e sejamos arrastados pela Grande Água.
Na brecha dos mitos, ele, o padre, professor, pesquisador,
vasculha nomes carreados de Sergipe, Pernambuco, Bahia,
catapultados pela Casa da Torre,
perdidos nos brejos, ribanceiras, serranias.
Onde estará nossa Ítaca?



(Como discernir na partitura do tempo o que se tornou usura da história?
Todo texto é ficção, dizem.
Nenhuma sessão da memória se repete com a fidelidade do cinema.
Apenas o cenário pode permanecer imutável.
Remontagens arqueológicas sedimentam nossos delírios e
as ruínas refeitas guardam detritos que suscitam apontamentos bizarros,
registros em cadernos esquecidos.
Pois a história, escreve José Honório Rodrigues, “não é só fato:
é também emoção, o sentimento, o pensamento dos que viveram
– a parte mais difícil dos negócios humanos”.)



Voltemos ao Padre, seu outro lado,
seu silêncio martirizado no quarto de estudos,
onde dormir é privilégio.
Aí doma seus fantasmas, suas letras.
Não tem com quem conversar, aprofundar argumentos,
buscar o verme que contamina o miolo de seu fruto,
o fruto vermelho da História.
Busca nos alfarrábios, cruza garatujas de batistérios.
E sempre Nascimento e Morte de permeio,
desmontados em árvores desenhadas em páginas coladas,
para chegar ao mais idiota descendente
de um coronel qualquer da Guarda Nacional.



O Álbvm do Seminário do Crato, de 1925
– álbvm com ‘v’, para imitar o latim da Santa Igreja –,
registra o aluno na página 202; o clérigo, na 207.
A fotografia da página 189, carcomida pela traça, revela:
batina, barrete, mas sem a capa romana
que o acompanharia durante tantos anos,
tremulante e negra sob o sol dos Cariris.
Pois assim reza o artigo 12
do capítulo III do Regulamento do Seminário Maior:
“Uma modéstia sem afetação e um porte digno
resaltem do seu todo, mormente nos actos religiosos
e quando estiverem recebendo instrucção” (sic).



É necessário lupa para recompor feições e formas.
Segundo da segunda fila, da direita para a esquerda.
A cabeça encoberta inclinada à direita;
deixa-se ver o relógio de algibeira,
quem sabe um Patek Philippe.
O rosto é magro; o nariz, aquilino, mouro;
as orelhas não se deixam passar despercebidas.
Não mira a objetiva do fotógrafo.
É uma visão para o largo,
um ar que o distingue da bonomia do grupo.
Tem um ar triste, inquieto.
Escreverá mais tarde:



“A zona é percorrida por rios secos e serranias de altura medíocre,
de platôs e faldas férteis, abrindo-se em depressões
vulgarmente conhecidas por boqueirões.
Florestas e serras de altura de mil metros, mais ou menos,
e as margens de rios, águas em lagoas, olhos d’água e cacimbas,
barreiros salgados, forragens substanciosas,
campos mimosos e agrestes ao lado de catingas,
carrascais e ilhas de cacto,
eis outra face da fisionomia natural da terra,
tudo conforme acentuou Capistrano de Abreu”.



Sempre Capistrano, o grande Mestre.
E, já assimilada, a leitura de Euclides.


Um homem sozinho atravessa a cidade:
batina negra, capa romana, faixa à cintura.
Segue o trajeto que vai da igreja da Sé ao Ginásio.
Quantas vezes terá feito esse percurso?
Saúda Tandô, sentado no meio-fio da praça.
“Em que pensa esse padre, com jeito de homem”,
se pergunta o anão?
Aqui tudo é vigiado.
A cada janela há um olho à espreita.
O padre caminha sem prestar atenção a quem passa,
nem atentar para quem se furta por detrás das gelosias.
Anda rápido para dar tempo à chamada do refeitório e,
logo depois, recomeçar reflexões e leituras.
Abrirá a porta de vidro da estante de cedro
com a chave escondida dentro do sapato, enrolada na meia.
Lembrança do regulamento, de quando era regente:
“Só poderão fazer leituras extra-programma mediante prévia
autorização do Padre Prefeito” (sic).
(As duas maiúsculas encerram o assunto.)


Equivoca-se quem pensa que sua busca tem como finalidade
cruzar ramos de famílias, desvendar mancebias,
revestir de letras de nobreza alguns filhos da terra.
Sua história tem dupla leitura:
de um lado, parece agradar a quem procura na veia
mínima gota de sangue caramuru.
Mas a outra vertente é a que mais lhe importa:
seguir os rastros do autor
de Caminhos do povoamento,
contrapor aos heróis oficiais de guerras subalternas
a saga dos anônimos.
Ou seja: catar os detritos da história,
cônscio de que o passado nunca fica para trás:
continua a vicejar entre os vivos,
como as bactérias nos corpos em putrefação.



Em 9 de janeiro de 1941, Padre Gomes,
nos Cariris, longe de tudo, ensina, pesquisa, escreve,
elabora e medita, sozinho.
Nesse mesmo dia,
sob a França ocupada e 5 dias
após a morte de Henri Bergson,
Paul Valéry pronuncia na Academia Francesa
o belíssimo elogio fúnebre ao filósofo,
de uma simplicidade que surpreende quem está familiarizado
com a escrita carregada de erudição e de refinamento do poeta.
Diz da alta figura de homem pensante que foi Bergson,
talvez um dos últimos, segundo Valéry, que teriam exclusivamente
e profundamente pensado, num mundo
em que se pensa cada vez menos:
“enquanto a miséria, as angústias, as limitações de toda espécie
deprimem ou desencorajam os empreendimentos do espírito”.
Observações sobre um homem pensante:
aplicam-se perfeitamente ao padre de Brejo Santo.


Passa o Padre Gomes e Tandô, o anão, se pergunta:
“Em que diabo está pensando esse homem?”
Somente hoje é possível compreender
o porquê daqueles passos apressados,
daquela inquietação permanente,
de sua genialidade e equívocos.



A fotografia:
não é mais necessário lupa para recompor as feições.
Não mira a objetiva do fotógrafo.
É uma visão para o largo,
um ar que o distingue do resto.
Tem um ar triste, inquieto.
Pensa num mundo mais largo, sem cadeias,
distante do jugo das genealogias,
longe de um sol que é o mesmo sol de todos os dias,
segundo Machado de Assis,
onde nada existe que seja novo,
onde tudo cansa, tudo exaure...
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Obs.: A ilustração é do artista plástico Hélio Jesuíno
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quinta-feira, 1 de abril de 2010


Ronis

Há um livrinho de fotografia que me acompanha sempre: o de Ronis, fotógrafo francês, amigo de Robert Capra. Dele me vem sempre à cabeça a imagem dessa criança que sorri, corre e carrega uma baguette debaixo do braço. Sua sombra projeta um estranho desenho sobre a calçada. O instantâneo foi feito na França do pós-Guerra, que Ronis soube registrar como ninguém. Detrás da imagem do menino, um muro enegrecido. O que há por detrás dele? Pouco importa. A criança volta para casa com um pão que é uma espécie de símbolo da França... Quantas leituras pode haver no instantâneo de um fotógrafo de gênio?
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