quarta-feira, 23 de junho de 2010


Pequeno exercício
sobre um poema de Paul Louis Rossi

Pequeno exercício de tradução sobre um exercício poético, manuscrito, de Paul Louis Rosssi, que me foi entregue por ele, após o almoço e uma longa conversa que se estendeu por uma tarde de dezembro, no Le Rostand, ao lado do Jardim de Luxemburgo :


Museo je
suis moissi

rocella tinctoriale
rouge piquante

cornicularia
capillacée d’un

beau vert épinard
lichen scriptus

couvert de petites
lignes noires inclinées

mousses lécanores
constellations de rivages

moisissures verdâtres
du ciel

***

Mouseîon sou
o mofado

rocella tinctoria
rubro picante

cornicularia
capilária de um

belo verde espinafre
líquen scriptus

vestido de mínimas
negras linhas inclinadas

espumantes lecanoras
espraiadas constelações

esverdeados bolores
do céu

Kaka Werá Jecupé


Leiam o que escreveu Kaka Werá Jecupé, escritor brasileiro, índio tapuia txucarramãe, desconhecido das antologias acadêmicas. Até quando?


“Para o tupi-guarani, ser e palavra, ser e linguagem, são uma só coisa. A palavra que designa ser é a mesma que designa palavra. Ayvu: alma e som. A própria palavra tupi significa som-em-pé. Nosso povo distingue o ser como tom de uma grande música cósmica, regida por um grande espírito criador, o qual chamamos Namandu-ru-etê ou Tupã, que significa o som-que-se-expande. O ser humano é visto como uma vibração, um ato pulsante. É a partir daí que começa a relação do tupi-guarani com a palavra. Um dos nomes da alma é neeng, que também significa fala. Um pajé é aquele que emite neeng-porã, aquele que emite belas palavras. Não no sentido da retórica. Não. O pajé é aquele que fala com o coração. Porque fala e alma são uma só coisa. Um é o que um fala”.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

CBN - A rádio que toca notícia - Tempo de Letras

CBN - A rádio que toca notícia - Tempo de Letras
José Saramago

Texto lido no encerramento do Fórum Social Mundial de 2002.

"Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.
Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar.
Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta.
Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então,
desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça.
Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...
Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.
Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia.
Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações.
Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos.
Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.
E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo.
Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica.
E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes...
Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.
Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor."


In: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16709&boletim_id=715&componente_id=11973



Traduzi este belo e importante texto de Paul Louis Rossi, amigo e poeta francês, de quem traduzi alguns poemas para a antologia Regards transatlantiques. O trecho faz parte do livro Paysage intérieur, inscapes, editado em 2004 pela Prefeitura de Nantes, numa série de homenagens feitas ao autor, em 2004.

Inscapes

Paul Louis Rossi

Traduz-se inscape, em francês, por Paysage intérieur (Paisagem interior). Essa interpretação é satisfatória, mas não revela a complexidade da noção d’inscape, elaborada por Gerard Manley Hopkins, poeta de língua inglesa.
Embora ele seja pouco traduzido, e quase desconhecido na França, considero Hopkins um dos maiores poetas da lírica contemporânea. Nasceu em 28 de julho de 1844, em Stratford, Inglaterra. Jovem, frequentou a Grammar School de Sir Robert Chomondesley, em Highgate, onde residiram Coleridge, De Quincey e Keats.
Em 1866, Hopkins abandona a religião anglicana e se converte ao catolicismo. Na Inglaterra vitoriana, essa conversão equivalia a um suicídio social. É renegado pelos amigos, e até mesmo pela família. Ingressa nos Jesuítas, em Roehampton, em 1868, no País de Gales. E queima seus poemas de juventude.
Em 1872, na ilha de Man, descobre Duns Scot. Este, que é chamado o Doutor Sutil – teólogo da escola franciscana, no século XIII, que polemizou com a doutrina de Tomás de Aquino – vai reconciliar Hopkins consigo mesmo, com o mundo sensível, a arte, a poesia.
O teólogo escossês pensava que a divindade se encontrava em cada elemento do universo, as plantas, as rochas, as nuvens, como na religião dos celtas. Scot escrevia: “a revelação tem um papel prático no universo; ela preenche a razão onde ela não pode chegar”.
A partir dessa filosofia de Duns Scot, Hopkins construiu a noção de Instress, que pode ser explicado como:
Golpe desferido no observador pela força intrínseca em todo objeto que lhe dá força e vida...
Ele toma como exemplo a nuvem para explicar essa noção:
A forma de uma nuvem é modelada: instressed pelo vento...
Para apreender essa noção de inscape, é preciso reter essa imagem da nuvem que se compõe e se descompõe ao sopro do vento. Ele anota no seu diário:
Esta manhã, inscape de nuvens...
É necessário admitir que essa imagem da nuvem, inscrita na visão é, no entanto, fugitiva. O inscape não se perpetua, surge através de um sujeito que observa o mundo e que é susceptível de reconhecê-lo na sua integridade, sua originalidade e sua beleza. Mas ele desaparece à menor brisa.
A própria palavra inscape é um neologismo forjado por Hopkins a partir de landscape. Portanto, paisagem interior, mas, ainda, motivo íntimo, esquema do intrínseco:
O instante apreendido na sua própria forma...
Como John Ruskin e William Turner, Hopkins exprime uma noção totalmente moderna da estrutura totalizante de uma paisagem, da forma de uma nuvem, de cada onda que se espraia.
Gerard Manley Hopkins morre em 8 de junho de 1889 na seu retiro de Tullaberg. Está enterrado no Jesuit Plot de Glanevin, na Irlanda. Ele era obcecado pela miséria material e moral do povo. Ele escreveu a Robert Bridges, em 1871:
No entanto, temo que estejamos às vésperas de alguma grande revolução. É terrível dizer, mas, num certo sentido, sou comunista...
Essas idas e vindas na existência e o laboratório do escritor inglês nos permite escolher o título de Paysage intérieur (Paisagem interior)inscape – com a intenção de criar para os visitantes uma evasão, uma visão, um universo mental, uma perspectiva onde eles possam se reconhecer.
Desejo que cada um dos visitantes retenha o que convém a seu espírito e ao seu gosto. A literatura é como a onda, ou a nuvem, que passam. Cada onda apaga um pouco o rastro da precedente, idêntica e diferente, portanto. Cada nuvem traz ao céu sua própria cor. É desejável que cada visitante imagine e leia nesse movimento a realidade e a forma de seu desejo.

quarta-feira, 16 de junho de 2010



Em discussão, prêmios de tradução literária. O melhor é cotejar os textos premiados com outros, como este, de Ivo Barroso, mestre tradutor e poeta...

 Venus Anadyomène

Arthur Rimbaud

Comme d’un cercueil vert en fer blanc, une tête
De femme à cheveux bruns fortement pommadés
D’une vieille baignoire émerge, lente et bête,
Avec des déficits assez mal ravaudés;


Puis le col gras et gris, les larges omoplates
Qui saillent; le dos court qui rentre et qui ressort;
Puis les rondeurs des reins semblent prendre l’essor;
La graisse sous la peau paraît en feuilles plates:


L’échine est un peu rouge, et le tout sent un goût
Horrible étrangement; on remarque surtout
Des singularités qu’il faut voir à la loupe…


Les reins portent deux mots gravés: CLARA VENUS;
—Et tout ce corps remue et tend sa large croupe
Belle hideusement d’un ulcère à l’anus.


Vênus Anadiomene

(tradução de Ivo Barroso)


Qual de um verde caixão de zinco, uma cabeça
Morena de mulher, cabelos emplastados,
Surge de uma banheira antiga, vaga e avessa,
Com déficits que estão a custo retocados.


Brota após grossa e gorda a nuca, as omoplatas
Anchas; o dorso curto ora sobe ora desce;
Depois a redondez do lombo é que aparece;
A banha sob a carne espraia em placas chatas;


A espinha é um tanto rósea, e o todo tem um ar
Horrendo estranhamente; há, no mais, que notar
Pormenores que são de examinar-se à lupa.


Nas nádegas gravou dois nomes: Clara Vênus;
-- E o corpo inteiro agita e estende a ampla garupa
Com a bela hediondez de uma úlcera no ânus.

De: RIMBAUD, Arthur. Poesia completa. Edição bilingue. tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994.
P.s.: A Vênus Anadiomene da ilustração é de Ticiano.

domingo, 6 de junho de 2010


Diário de uma viagem ao horror

Com este título, o jornal espanhol El País publicou, hoje, o relato do escritor sueco Henning Mankell, sobre a tomada por militares de Israel do navio turco em que se encontrava e que fazia parte da flotilha que transportava víveres para a faixa de Gaza. Henning Mankell é mundialmente conhecido e vários de seus livros foram publicados no Brasil, entre os quais O homem que sorria. Após sua libertação, Henning Mankell, já na Suécia, declarou, que o governo de Israel deveria ser processado por pirataria. Além disso, aventou a possibilidade de proibir a tradução de suas obras em hebreu.

No mar (4.30 horas.)

Henning Mankell

(...) "Acabo de conciliar o sono, quando me acordam. Já no convés, comprovo que o grande navio de passageiros estáiluminado por potentes holofotes. De repente, ouvem-se alguns disparos. E compreendo que Israel escolheu o caminho do enfrentamento brutal.
Transcorrida uma hora exatamente, os botes de borracha se aproximam velozmente cheios de soldados mascarados que iniciam a abordagem imediata. Reunimos-nos na cabine de pilotagem. Os soldados se mostram impacientes e querem que desçamos para o convés. Alguém demora e é atingido por uma descarga elétrica no braço. O homem cai no chão. Outro homem que também não se movimentava com a pressa suficiente recebe o impacto de uma bala de borracha. E tudo isso acontece ali mesmo, ao meu lado. É absolutamente real. Pessoas totalmente inocentes tratadas como animais e castigadas por sua lentidão.
Somos agrupados no convés. E ali, permaneceremos durante onze horas, até que o barco atraque em Israel. Os soldados nos filmam de vez em quando, mesmo não tendo qualquer direito a isso. Ao me ver tomando notas, um dos soldados se aproxima e me pergunta o que estou escrevendo. É a única ocasião em que perco as estribeiras. Respondo dizendo que não é da sua conta. Avisto apenas seus olhos e não sei o que está pensando, mas no final dá meia volta e vai embora.
Onze horas imobilizados, amontoados no meio daquele calor, pode ser um método de tortura. Para ir urinar, tenho que pedir permissão. Pão, biscoitos e maçãs é o que nos dão para comer. Tomamos uma decisão conjunta: não pedir que nos permitam cozinhar. Seríamos filmados e isso seria mostrado como um ato de generosidade da parte dos soldados. Assim, nos contentamos com os pães e os biscoitos. É uma humilhação sem igual. (Entretanto, os soldados retiraram os colchões dos camarotes e agora dormem ao fundo da popa.
Durante essas onze horas tenho tempo de dar-me conta o que aconteceu. Fomos atacados enquanto nos encontrávamos em águas internacionais, o que implica que os israelenses atuaram como piratas, não muito melhor do que os piratas que agem na costa da Somália. Por outro lado, no momento em que obrigaram o nosso navio a tomar o rumo de Israel, estávamos sendo sequestrados. Essa intervenção é completamente ilegal.
Entretanto, tentamos falar, elucidar o que sucederia, e nos perguntamos como é possível que os israelenses tenham optado por uma solução que os coloca num beco sem saída. Os soldados nos observam. Alguns fingem que não sabem inglês, porém todos falam e entendem essa língua. Dois deles são mulheres. Parecem preocupadas. Talvez depois, quando tiverem terminado o serviço militar, decidam fugir para Goa e destruir suas vidas se drogando. Isso acontece constantemente."(...)

http://www.elpais.com/articulo/reportajes/Diario/viaje/horror/elpepusocdmg/20100606elpdmgrep_2/Tes

sábado, 5 de junho de 2010



Remember Rachel Corrie (1979-2003)

nenhum arado move a terra
com a ira do trator
(¿sem o sopro da ternura
quem sorve o dom da semente?)
há dias vi as fotos no jornal:
sozinho percorri a casa,
subi escadas,
abri janelas,
folheei o corpo encantado dos livros:
mas não acreditei no meu rosto
ao olhar o espelho.
perguntei
a mim mesmo:
¿que substância teria faltado
à tabela periódica?
¿que desencontro de átomos
deslocara nossas constelações?

Remember Rachel Corrie (1979-2003)

(Transladed by Paul Webb)

No plough should turn the earth
with the anger of that tractor.
Who dare enjoy the gift
of seeds unblessed by loving breath?
The photos have been in the papers for days.
I wander the house alone,
throw windows open,
climb stairs,
leaf through the enchanted pages of books.
I have lost faith
in my own questioning face.
What element is missing
from the Periodic Table?
What misalignment of atoms
has set the constellations so askew?
__


P.s.: Rachel Corrie era uma jovem pacifista dos Estados Unidos. Foi esmagada por um trator, quando protestava contra a destruição de casas de palestinos pelo Exército de Israel. Repito o blog, editado em 30 de novembro de 2009, porque o porta-voz dogoverno de Israel afirmou que iria impedir outro navio carregando ajuda humanitária destinado à faixa de Gaza. Por coincidência, o barco irlandês tem o nome de Rachel Corrie.

Retábulo de Jerônimo Bosch

Retábulo de Jerônimo Bosch