terça-feira, 27 de julho de 2010


Os anomenos

Manoel Ricardo de Lima, poeta e crítico, oferece-nos um pequeno livro, os anomenos, editado pela editora de casa, com copyleft do autor e projeto gráfico de Fernanda do Canto. Uma escrita que faz pensar, por buscar na leitura crítica da vida cotidiana, repetitiva e vazia, os materiais para a construção de uma poética do banal.
Um pequeno exemplo:
Os humbertos

Manoel Ricardo de Lima

Estes seres do lado de lá do mundo, os
humbertos, têm certeza que carregam em
cada um deles, um a um, o nome de um
rei, e poderiam facilmente rechear a pança
com títulos nobiliárquicos como Humberto
primeiro, Humberto quinto, Humberto nono
etc. Mas não, ferozes e ao mesmo tempo
mansos em seu comportamento ambíguo,
entre a nobreza e a rua, os humbertos não
são nada impassíveis, ao contrário, com uma
passionalidade extremada, ousam a cada vez
que descobrem uma nova possibilidade de
vida escorregar as suas patas e os seus olhos
graúdos até seja lá o que se apresente como
desejo. Se dicotômicos, contraditórios; e se
contraditórios, não esquecem de cuidar de si
mesmos nem dos que gostam como seu mais
ardiloso triunfo.
*
Obs.: A ilustração é do artista Hélio Jesuino.


segunda-feira, 26 de julho de 2010


Coincidências poéticas...
No capítulo Quadrinhas, de Cantadores (a primeira edição é de 1921), o escritor cearense Leonardo Mota cita como da autoria de Correia de Oliveira os versos:

Ó ondas do mar salgado,
De onde vos vem tanto sal?
Vem das lágrimas choradas
Nas praias de Portugal.

É de 1922 os versos do poema Mar Portuguez, de Fernando Pessoa (Mensagem):

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal.(...)

quinta-feira, 15 de julho de 2010


Memórias, memórias...

No ensaio intitulado L’amour en retrait, Valeria Piazza evoca o diário de Hanna Arendt e a correspondência da filósofa com Heidegger, para tratar sobre a maneira como um autor se manifesta em duas modalidades de escrita: a correspondência e o diário. Valendo-se de textos de Walter BenjaminValeria Piazza registra que o diário “não é alguma coisa que chega ao eu que vive”, mas é com o diário que “a experiência sai do mundo dos fatos e acede à língua, inaugurando uma nova dimensão” onde o eu deixa de ser prisioneiro no mundo dos acontecimentos, tornando-se ele próprio ‘rayon du temps’, pura temporalidade.
Escrito nos limites dos gêneros, quando prosa poética mescla-se a fragmentos de diário, certos livros enfeixam-se na frase de Benjamin, citada por Valeria Piazza: “livro insondável de uma vida jamais vivida”. É quando estamos diante de uma escrita na qual os 'diários' ou as 'memórias' são também  ficção e experiências que 'acedem à lingua’. Quanto são assim?...

(AGAMBEN e PIZZA V.: L’ombre de l’amour – le concept d’amour chez Heidegger. Paris : Payot Rivages. 2003)
Ilustração de Braque.

segunda-feira, 12 de julho de 2010


Geraldo Maia


Leiam a entrevista do músico Geraldo Maia, no site MuzaMusica,  cuja introdução transcrevemos:

"Geraldo Maia é cantor e compositor pernambucano , dono de voz cristalina com doce sotaque nordestino, nó de destinos, e com ritmos que fluem por sua cabeça e pela cabeça de um Brasil geográfico.
Gravou seu primeiro trabalho em 1987 e em seguida partiu para Portugal onde viveu por pouco mais de dez anos. Voltou em 99 trazendo um album , “Agua Verde”, lançado aqui no mesmo ano.
Sua musica se reveste de elegância harmônica trazendo uma caudulosa sensação de ritmos brasileiros como o coco, o samba e o baião e que vertem na tal mpb.
Geraldo faz uma musica voltada a elos que ele remonta com a musica brasileira, esta sua busca se revela por exemplo em álbuns como o Samba de São João (2007) e “Samba do Mar Quebrado” (2004), que trazem sambas interessantes como um de Luiz Gonzaga (sim, o rei do Baião) e outros de compositores de sua região, terra de um tal José, Jackson do Pandeiro.
Seu trabalho tem uma beleza tamanha, que me leva a me perguntar por que sua musica distribuida em expressiva discografia não se aninhou por estes Brasis?
Segue abaixo entrevista que fiz com o compositor durante o começo deste ano.
Conheça a personalidade deste interessante músico , ouça alguma de suas belas composições."


A homepage de Geraldo é http://www.geraldomaia.com.br/
http://muzamusica.blogspot.com/2010/06/geraldo-maia.html

domingo, 11 de julho de 2010


Um poema de Julia Jarré

IX

Para dialogar com teu inventário

Julia Jarré
Esta forma de estar em ti
o dia não ensina:
a música do sussurrar das flores
o vento – pele do mundo
nem o mar sereno em nós

A dança luminosa no escuro –
insetos que brilham – estrelas
nem a areia nos pés dos cavalos.

Nada me dizem as cantigas
de crianças nas portas das casas
não posso saber nem assim
pelo cheiro da terra molhada.

O nosso amor é secreto
anis no mundo terreno
toque de mãos – um mistério
completamente azul

***

(Do livro Noite de véspera (Edições Moinhos de Vento. Recife. 2010)
Ilustração: Braque

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Por aqui passou Miguel Torga...

Ao lado da antiga Sé de Lisboa, ergue-se o prédio onde funcionava a prisão do Aljube. Ali eram presos, torturados e interrogados os opositores de Salazar. Tudo ocorria sob a benção da Igreja Católica, que tinha no cardeal Cerejeira o mais fiel aliado do ditador português. Pelo Aljube passaram pessoas ilustres, como Miguel TorgaSônia fotografou o edifício. A prisão foi desmontada pelo Movimento de Abril.


Na placa:

Aqui, no silêncio das ‘gavetas’
da pátria amordaçada
dos peitos desfeitos pelas torturas da pide
subiu o clamor da liberdade
floriu abril”.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

José e João

Traduzi recentemente o conto El barranco, de José María Arguedas, que integra seu primeiro livro, Agua, de 1935. Será publicado na revista Para Mamíferos, com apresentação do poeta peruano e amigo do escritor, Hildebrando Perez Grande. Como neste conto, toda a extraordinária obra de Arguedas tem a marca de sua convivência com a cultura indígena de seu país, o Peru. Angel Rama, no ensaio Meio século de narrativa latino-americana, observa que o romancista de Os rios profundos tentou construir “uma imagem interior e não exterior do índio, substituir o autômato da exploração e das alegações por uma criatura viva e próxima que pode ser reconhecida pelo leitor como um igual”. Por isso não é fácil traduzir Arguedas, como não o foi trasladar para outras línguas a obra de Guimarães Rosa (como bem atesta a correspondência entre o escritor de Grande sertão e seu tradutor alemão, Curt Mayer-Clason). Aqui, prefiro a palavra ‘língua’: vai além de ‘idioma’: língua diz o quanto textos doem à boca, como se estivéssemos a sentir o gosto das terras das Punas de um certo José, ou dos Gerais, de um certo João.
É comovente a leitura do diário de José María Arguedas, cuja primeira parte abre seu último e póstumo livro, Zorro de arriba, zorro de abajo, escrito antes de seu suicídio, cometido em novembro de 1969. Nas páginas do diário, inscritas no livro, Arguedas comenta suas conversas com João Guimarães Rosa, seu grande amigo, “esse Embaixador tão majestoso”, que num momento de depressão e intimidade, revelou ao peruano que os dois haviam ‘descido’ ao âmago de seu povo e não o haviam ‘descido’. De fato, entre os escritores latino-americanos foram dos raros que compreenderam e interpretaram a vida e a linguagem dos ‘de baixo’. E é certamente o mergulho nesse encontro de águas que fez Antonio Cornejo Polar observar que, no Zorro de arriba, zorro de abajo, “os componentes andinos são de tal magnitude e exercem tão decisivas funções, que é legítimo pensar que nessa novela, pela primeira vez, a racionalidade indígena é que dá a razão da modernidade”. Essa afirmação bem poderia ser repetida no que se refere à ‘racionalidade sertaneja’ de Guimarães Rosa.
Destaca-se no Diário inusitado de Arguedas, a página escrita no dia 17 de maio de 1968. Dirige-se a João (Guimarães Rosa), já morto, para contar o episódio de seu encontro sexual com uma pobre e prenha camponesa da aldeia de Ukuhuay e pergunta : “Por qué me dirijo a ti?”. E, após fazer considerações sobre as dificuldades para falar “com uma mínima limpeza”, confessa: “Assim somos os escritores de províncias, este que por terem sido comido pelos piolhos, chegamos a entender Shakespeare, Rimbaud, Poe, Quevedo, mas não o Ulisses”. Provincianos, que somos todos, segundo ele, de nações e do mundo, “que é também uma esfera, um estrato bem fechado, o do ‘valor em si’”.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Postado em 9 de setembro de 2009

Sou mais Maradona...



Não entendo de futebol, mas gosto dos comentários de Ralf Carvalho. Digo-me que se os críticos escrevessem sobre literatura como ele fala de futebol nossa vida literária teria outro encanto. Não entendo de futebol, mas não gosto de Pelé: prefiro Maradona. Ao lado dele, Dunga parece um gerente de banco; do mesmo jeito que Pelé sugere um executivo a fazer o marketing de si mesmo. Se futebol é paixão, nada melhor do que o tango para traduzi-la em passes de beleza e desespero. Que importa se Maradona transmite a desgraça e rói as unhas nos cantos do gramado? É assim que ele vai se tornando personagem de tragédia, como o foi Garrincha, certamente o mais brasileiro de todos os jogadores. Não entendo de futebol, mas prefiro o futebol arte àquele pensado pelos Franz Beckenbauer, jogado como partidas virtuais, arquiteturas de gráficos e cronômetros. Quando vi Maradona no seu desespero, veio-me a imagem fugaz de um touro se arremessando contra as traves, um bólido azul-celeste dominando a geométrica verdura, onde só ele parecia ter o domínio e a maestria. Maradona é a tragédia do Che gravada no braço; Pelé, o Brasil do “ame-o ou deixe-o” dos anos 70. Mesmo torcendo pelo Brasil, sou mais Maradona...