quarta-feira, 20 de outubro de 2010

De orquídeas

Orquídea (Dendrobium anosmum) medalha de bronze na XXXI mostra de orquídeas da Associação dos Orquidófilos de Pernambuco, realizada entre os dias 15 e 17 de outubro. A orquídea foi cultivada numa coité (Crescentia cujete), idéia de Sônia Lessa Norões.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Um grande espetáculo

Século XXI. O mundo estarrecido com 33 homens soterrados a mais de 600 metros de profundidade, em discutíveis condições de trabalho, numa mina falida, em pleno deserto de Atacama. O Chile não é apenas país de terremotos. É também o de massacres de mineiros. Permanece vivo na memória nacional o famoso episódio da matança de Santa María de Iquique, quando cerca de 3.000 operários foram executados pelo exército chileno. Foi em 1907. Mas, desde então, o que terá mudado? O presidente recém-eleito, magnata ligado às multinacionais, entendeu a situação e agiu com presteza: tudo transformou num grande espetáculo, no qual caberia a ele o principal papel. Os 33 operários certamente passarão de heróis a cobaias. Pois é preciso saber o quanto o homem suporta, para que possa ser arrancado da terra o metal que serve para fabricar os instrumentos de morte e para alicerçar um modelo de desenvolvimento desenfreado, do qual não podemos  conceber o fim.
Na noite do resgate destes 33 mineiros chilenos, restava ler Pablo Neruda, no seu Canto Geral, traduzido  por Paulo Mendes Campos.


Era já alta noite, noite profunda,
como o interior vazio de um sino.
Ante meus olhos vi os muros implacáveis,
o cobre derruído na pirâmide.
Era verde o sangue destas terras.(...)

As vértebras do cobre estavam úmidas,
descobertas a golpes de suor
na infinita luz do ar andino.
Para escavar os ossos minerais
da estátua enterrada pelos séculos,
o homem construiu as galerias
de um teatro vazio.
Porém a essência dura,
a pedra em sua estatura, a vitória
do cobre fugiu deixando uma cratera
de ordenado vulcão, como se aquela
estátua, estrela verde,
fora arrancada ao peito de um deus ferruginoso
deixando um oco pálido socavado nas alturas.

sábado, 2 de outubro de 2010

No caos, a compaixão
(sobre Retratos imorais, de Ronaldo Correia de Brito)

Um homem de meia-idade, de costas, metade do corpo emergindo de uma água parada, mergulhado em si mesmo, indiferente a uma escada fincada à sua direita e a algumas rochas à esquerda. É a capa de Retratos imorais, o mais recente livro de Ronaldo Correia de Brito. O homem esquece a salvação – escada e pedras – e olha para baixo: talvez o próprio reflexo no espelho da água. Não uma água ameaçadora; no entanto, nela há algo de putrefato, alguma coisa que nos faz pensar no padecimento ou na resignação. O fio de prumo dos contos de Retratos repousa sobre essa superfície plana de um líquido sob a qual perpassa a ‘imoralidade’ dos retratos de seus personagens, aparentemente – mas só aparentemente – tão díspares quanto o médico do conto intitulado Catana ou o paraplégico de Homem folheia álbum de retratos imorais.
Capa e título do livro anunciam um con-texto julgado desconfortável por algumas resenhas, pois é susceptível de tocar quem não se acostumou aos golpes do mal e do absurdo distribuídos, desde muito, por autores como Dostoievski, Camus ou Kafka. Não é por acaso que o autor de O processo é sempre lembrado para apadrinhar livro que se desvie da tutela de certa literatura déjà vu e de cujo núcleo infernal fazem parte o ‘imoral’ ou o ‘absurdo’ Retratos imorais certamente intimidará alguns leitores, porque se situa nessa órbita de contaminação, de infecção.
Depois de olhar a capa e de ler o livro, vem a pergunta: de onde nasce a aflição desses contos, esse ‘desconforto’ que toca a susceptibilidade de alguns resenhistas? Choca a constatação de que o absurdo se parece demais com nosso cotidiano, as situações vividas pelos personagens brotam diretamente de nossas ruas, apartamentos ou hospitais, talvez de nossas próprias casas. Além disso, essas circunstâncias são transfiguradas na narrativa por uma espécie de ótica que inverte as imagens e depois as tinge de cores bizarras: fotografias feitas para nos alcançar com um soco de direita, não para serem pregadas nas paredes, à guisa de lembrança.
No último conselho de seu decálogo sobre a construção do conto, um de seus mestres, o uruguaio Horácio Quiroga, escreveu assim: “Conta como se teu relato não tivesse mais interesse do que para o pequeno ambiente de teus personagens, dos quais tu poderias ter sido um. De nenhum outro modo se obtém a vida do conto”. De fato, somente num ‘pequeno ambiente’ é possível situar o leitor, transformá-lo num cúmplice. A vida nos contos de Retratos imorais transcorre nesses espaços exíguos, onde personagens se debatem em situações quase sempre violentas, até esbarrarem numa forma de impotência ou de resignação. Quando o narrador, no conto Pai abençoa filho, lembra que “todas as experiências do homem são de algum modo análogas”, essa única frase justifica as referências recorrentes do autor ao Eclesiastes, a Shakespeare ou ao Livro das mil e uma noites. Se não há novidade no que diz respeito aos grandes temas que perpassam as histórias humanas, se estamos fadados a nos debater entre a incapacidade de revolta e o infortúnio, resta ao filho mais novo repetir ao pai o pedido da bênção ancestral, que é a repetição do ciclo, a espiral que finda em si mesma. Essa impotência, percebida nas entrelinhas de cada conto, é algo intolerável ao individualismo burguês, que se imagina infenso a qualquer contágio e só consegue se abismar com o inevitável quando lhe chega a ponte de safena ou alguma forma de câncer. Pois, para ele, é imperdoável a história sem herói, o conto que se inicia com um personagem derrotado.
Avanço o olhar na perspectiva dos personagens, para não tratar do autor; ele pode restar à sombra quando o livro está pronto e assume destino próprio. É nesse instante que ele, o autor, deve se sentir feliz: seus personagens passam a caminhar com tanta autonomia que as interpretações biográficas deixam de ter papel relevante. Milan Kundera escreveu que existe apenas um método para compreender os romances de Kafka: lê-los, não tentando buscar nos personagens o retrato do autor, mas se esforçando para acompanhar esses personagens com o máximo de atenção, através de seus comportamentos, opiniões, pensamentos. Creio que esse é um bom método a seguir no caso de Retratos imorais. O sertão desfigurado do romance Galileia, de um ‘regionalismo’ às avessas, é mero cenário para permitir uma sorte de fuga de Bach entre vozes destoantes. Em Retratos, a arquitetura urbana da casa do psicanalista Rodolfo, atravessada por uma rede, pode ser percebida como oficina onde se fermenta a alienação de uma intelectualidade provinciana, da qual nem sequer escapa o serviçal Francisco.
Encontramos em alguns dos textos de Retratos imorais uma linguagem de toque híbrido – pequenos retalhos de teatro ou de cinema – em contos como Mães em fuligem de candeeiro ou Homem-sapo. Esse hibridismo, que nada tem a ver com questões de gênero, auxilia a organização de nosso olhar, o olhar do leitor, em torno de episódios aparentemente simples, mas que transcorrem numa circunscrição do espaço que confere ao conto sua conformação esférica, para utilizar a ideia de Cortázar. Nessa esfera, penetramos; nela, quedamos presos, como quase todos os personagens, sem claraboias de onde enxergar a salvação.
E aí se encontra, a nosso ver, o nó górdio da literatura do autor de Retratos imorais: a busca da salvação de quem está inexoravelmente fadado a sucumbir. No final de cada conto, o leitor depara com uma espécie de perplexidade, de interrogação, que o ameaça como lâmina ao sol. Mas se nada tem resposta é porque – maktub – tudo está escrito. Como no texto Mãe numa ilha deserta, quando a luz do farol se apaga de repente, falta petróleo, a escuridão desaba sobre a mãe e o filho e não resta mais do que, ao longe, o registro de um acordeom. O cristianismo tolstoiano dessa literatura abre com brutalidade a ferida para nos acordar a compaixão.
Tem alguma coisa a ver com a natureza dos contos de Retratos imorais a frase com que Albert Camus abre seu ensaio Filosofia e romance: “Todas essas vidas mantidas no ar avaro do absurdo não saberiam como se sustentar sem algum pensamento profundo e constante que as anima com sua força”. E, em seguida, o autor de O mito de Sísifo conclui que ao sermos obrigados a conviver com esse absurdo, a alegria absurda por excelência é a criação. Talvez a alegria da criação de Ronaldo Correia de Brito consista em ressuscitar personagens de seu dia a dia, para os quais, se não há a salvação, pelo menos poderá haver alguma espécie de misericórdia.

(in Correio Braziliense, 02.10.2010)