sábado, 15 de janeiro de 2011


Professores ou mestres?

A convite do mestre de artes marciais (judô e jiu-jitsu brasileiro) Daigo Rodrigues, subi na quinta-feira, dia 13, o morro de Santa Terezinha, para conhecer o trabalho pedagógico que ele, com outros mestres, desenvolvem junto a crianças e adolescentes da comunidade. Depois de quase nove anos a escola é um celeiro de campeões. Um de seus alunos, Robson Marcelino, foi campeão mundial e pan-americano.
Após a visita, fiquei a pensar que nossas escolas buscam professores, quando, na verdade, precisamos de mestres. O mestre vai além da escola, persegue uma via; não apenas ensina, exemplifica. E lembrei de um dos grandes livros que li, Poema pedagógico, de Anton Makarenko. Sobretudo na insistência do seu autor em afirmar – a partir de sua experiência na Colônia Gorki – que a questão da educação e sua metodologia devem estar separadas da questão do ensino, na medida em que a educação não acontece apenas dentro da escola.
No dia em que isso for compreendido e o ensino se der através de mestres, como os que conhecemos, a educação, no seu sentido mais amplo, poderá ser alcançada. Será o dia em que nossos governantes deverão colocar seus filhos nas escolas públicas, para que a palavra “democracia” possa começar a ganhar, de fato, seu sentido.

(*)

Rolar dentro de si
como a pedra no poço.
Do arco do corpo
desencadear o sopro.
Avistar
onde o olhar não alcança:
ler os passos de Deus
dentro da dança.

(*) Everardo Norões: A rua do Padre Inglês (Editora 7Letras. Rio de Janeiro)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011


El sueño del celta: do genocídio à globalização

Chego no final das 464 páginas de El sueño del celta, o último livro de Mario Vargas Llosa. Como A Guerra do fim do mundo, trata-se de uma espécie de recriação histórica. No caso, as aventuras de um diplomata inglês, Roger Casement (1864-1916), que foi cônsul em Santos, no Pará e no Rio de Janeiro. De origem irlandesa, distinguiu-se, no início do século passado, por denunciar as atrocidades cometidas no Congo pelos esbirros de Leopoldo II, rei dos belgas, e as perpetradas no Amazonas peruano pelos exploradores da borracha. Para quem leu os dois livros é difícil não fazer a comparação. A guerra do fim do mundo pode ser mais instigante, pois levou às últimas consequências um desafio que nenhum escritor brasileiro ousou aceitar: traduzir numa obra de ficção a saga do Conselheiro – místico e mártir de Canudos – e recompor o sertão euclidiano em toda sua complexa geometria.
Mas o El sueño del celta se ocupa de outro personagem histórico não menos controvertido. Embora a história de Roger Casement se situe num contexto diferente, é tão polêmica quanto a do beato do Monte SantoRoger Casement foi um herói dos direitos humanos avant la lettre e terminou por se envolver com grupos independentistas da Irlanda, o que lhe custou caro. Acusado de traição por suas ligações com a Alemanha, em guerra contra a Inglaterra, foi feito prisioneiro na prisão de Pentoville. Seu diário, apelidado de Diário negro, eivado de confidências pessoais, caiu nas mãos do serviço secreto inglês e foi utilizado contra seu autor, acusado de traição e homossexualismo. Há quem sustente que certas passagens foram forjadas, discussão que dura até hoje. Mas o certo é que páginas do diário serviram de argumento determinante para levar Roger Casement ao cadafalso no dia 3 de agosto de 1916.
El sueño del celta se divide em três parte (El Congo, La Amazonía e Irlanda). Nos capítulos ímpares são narrados os três meses de prisão que precederam a execução de Roger Casement. Através desses capítulos o leitor acompanha a intimidade, a angústia e as reflexões do personagem nos seus últimos momentos de vida. É através deles que Vargas Llosa explora sua visão do mundo. Os capítulos pares se desenrolam como reportagens sobre a exploração, as torturas, as chacinas praticadas contra as populações do Congo e da Amazônia peruana e a participação de Casement na fracassada Insurreição Irlandesa de 1916.
Entre A Guerra do fim do mundo e El sueño del celta mudam os cenários, mas pouco sofre a visão do escritor sobre o absurdo da condição humana. Se o paradigma de Vargas Llosa é a escrita de Flaubert – a quem dedicou todo um livro, A orgia perpétua –, é certamente inspirado em escritores como Camus que ele busca demonstrar o quanto a vida da ficção torna mais suportável, embora paradoxalmente mais pobre, nossa vida verdadeira.
Enquanto A Guerra do fim do mundo o cenário é único – o universo de Canudos – em El sueño del celta a aventura do personagem é tricontinental: o Congo (pedaço da África então sob o domínio de Leopoldo II, rei dos belgas), Iquitos e a selva peruana (onde se articulavam interesses peruanos, brasileiros e ingleses em torno da exploração dos seringais) e a Irlanda (envolvida num conflito nacionalista que teve como pano de fundo as contradições imperialistas que deram origem à Primeira Guerra Mundial).
A forma contundente com que Vargas Llosa narra certos episódios e os articula no contexto histórico da época nos oferece uma verdadeira ‘aula de história’ e um exercício de desmistificação sobre os primórdios de nosso capitalismo selvagem. Numa entrevista a El País, em 29 de agosto de 2010, respondeu que na Bélgica o rei Leopoldo II não era tratado como genocida. Ao contrário, ali havia um museu maravilhoso, apesar de se calcular que, no Congo, haviam morrido mais de dez milhões de pessoas, duas vezes mais do que no ‘holocausto’ judeu. Como no exemplo do rei Leopoldo II, vários de nossos “heróis” envolvidos em crimes contra os direitos humanos também têm seus nomes nas placas de muitas de nossas ruas e praças.
Apesar de ser considerado por muitos como um conservador, devemos à arte do romance de Vargas Llosa – entre os quais este El sueño del celta – a desconstrução dos fundamentos coloniais de nossas elites e uma escrita que abre como corte de bisturi as entranhas de nossa América. É bem verdade que sua preocupação maior é penetrar nos labirintos da condição humana para decifrar as origens do mal. Nesse aspecto, esse seu livro certamente será cotejado com outros que tratam da mesma realidade – a exploração brutal de populações nos confins do mundo –, a exemplo de O coração das trevas, de Conrad. Mas se quisermos penetrar nas entrelinhas de seus romances é possível entrever o ovo da serpente que acabou por gerar a sociedade em que vivemos. Afinal, na raiz do imperialismo dos conglomerados financeiros, que nos acostumamos a chamar de globalização, estão os resquícios da rapina e dos crimes contra a Humanidade de que tratam alguns romances do autor do tão nosso A guerra do fim do mundo.