domingo, 20 de fevereiro de 2011


Acuso Daniel Lima

Marcelo Mário de Melo

Eu acuso Daniel Lima de se travestir de padre, filósofo e poeta para inquietar as almas e subverter os bons costumes com palavras e ações.
Acuso Daniel Lima, convidado para dar aula no colégio das freiras, em Nazaré da Mata, nos anos 1960, de afirmar às alunas que as histórias de Adão e Eva e da arca de Noé não passavam de metáforas, e de fazer a defesa amacacada da teoria da evolução das espécies.
Acuso Daniel Lima de, na mesma cidade, como confessor, quando as moças lhe perguntavam se era pecado o namorado botar a mão aqui ou ali, mudar de assunto e lhes responder que o importante eram os problemas sociais.
Acuso Daniel Lima de procurar impedir a freqüência das bondosas beatas na sua casa, colocando nas proximidades da porta de entrada, como espantalho, nada mais do que um indecoroso penico.
Acuso Daniel Lima de ter fundado em Nazaré da Mata um jornal aliado às Ligas Camponesas, e aos sem terra, prenhe de denúncias contra os laboriosos proprietários rurais, tratados pejorativamente como latifundiários.
Acuso Daniel Lima de ter ameaçado de denunciar como reles plagiário o seu superior, Arcebispo de Olinda e Recife, Don Antônio de Almeida Moraes Júnior, apelidado desrespeitosamente pelo vulgo de “Toinho Coca-Cola”, e que usando da sua autoridade eclesiástica o afastou da paróquia em Nazaré da Mata, quando então passou a exercer suas atividades malsãs no território da Arquidiocese de Olinda e Recife e mais precisamente no meio universitário.
Acuso Daniel Lima de ter soltado, no Lar Sacerdotal, os custosos passarinhos importados e zelosamente presos no viveiro do padre Sidrônio, indignando-se e chamando de “bestas” àqueles que não se dispuseram à revoada.
Acuso Daniel Lima de ter fugido de uma clínica de propriedade da Santa Madre Igreja, depois de um tratamento de estafa, devida certamente às suas desmazeladas andanças, sem pagar os serviços, protesto contra “o poder econômico”.
Acuso Daniel Lima de ter-se posto à frente do pároco da igreja da Boa Vista, no espaço do altar mor, e começado a rezar a missa que seria rezada por aquele. E quando foi advertido com as palavras: “olha a ordem!”, respondeu-lhe entredentes com ar de zombaria: “e o progresso?”
Acuso Daniel Lima de, quando ouvia falar em “socialismo cristão”, afirmar com desdém que que “socialismo é socialismo, isto é safadeza de padre”.
Acuso Daniel Lima de ter-se disfarçado de jornalista e convivido durante um mês, no Rio de Janeiro, no Morro do Esqueleto, com favelados, malandros e bandidos.
Acuso Daniel Lima de ter varado uma madrugada até o nascer do sol, em companhia de Jommard Muniz de Brito, Wilson Araújo de Souza e outros irreverentes, percorrendo quilométricas discussão sobre filosofia e estética, regadas a bebida alcoólica.
Acuso Daniel Lima de ser matriz de comportamentos domésticos de péssima instrução para as crianças, como fritar ovo com óleo de peroba e passar bife no ferro de engomar.
Acuso Daniel Lima de ter influenciado gerações e gerações com as suas tresloucadas idéias. E ainda mais, de ter estimulado neles a evasão das próprias tresloucuras, numa perigosa progressão geométrica, cujos resultados ainda precisam ser dimensionados.
Acuso Daniel Lima de, aos 95 anos de idade, ter publicado um livro de poesia que exala deslimites e transgressões e vilipendia a as rotinas da ordem estabelecida, exortando contra elas a ação destrutiva de um vulcão.
Acuso Daniel Lima pela sua longevidade, que significa o prolongamento das suas incitações.
Condeno Daniel Lima a padecer na condição perpétua de poeta, farejando o imponderável e comendo o pão que o filósofo amassou com o fermento da dúvida.
________
Pedi ao poeta Marcelo Mário Melo para publicar este seu texto neste blog. O livro do Padre Daniel Lima acaba de ser publicado pela CEPE. (A ilustração é de Max Ernst)
________

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Elizabeth Bishop (2011-1979)
Para muitos de nossos poetas passou desapercebido o centenário de Elizabeth Bishop (nascida em 8 de fevereiro de 2008 e falecida em 6 de outubro de 1979), uma das maiores poetisas de língua inglesa do século XX. Ela viveu vários anos no Brasil, onde escreveu grande parte de sua obra.  O jornal inglês The Guardian publicou uma reportagem de William Boyd, na qual são lembrados lugares onde ela morou e aspectos do cotidiano da poetisa em terras brasileiras. Vale conferir.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Eco de Anfion

Encontrei no livro de Umberto EcoQuase a mesma coisa (em que ele fala quase sempre dele mesmo) o conceito de écfrase. Écfrase é a descrição minuciosa, segundo o Houaiss. Poderia ser chamada de denotativa ou objetiva. Umberto Eco cita como exemplo as descrições de Filostrato, nascido no ségulo II d.C. Na Fábula de Anfion, poema de João Cabral de Melo Neto, Anfion toca uma flauta. Então, procurei  um texto de Filostrato, que traduzi do francês. Nele, Anfion toca uma lira. Nos dois casos, ele mobiliza as pedras com a linguagem da música para erguer as muralhas de Tebas.


Consta que Hermes foi o primeiro a construir uma lira com dois chifres, uma peça transversal e uma carapaça de tartaruga, e que presenteou esse instrumento primeiramente ao deus Apolo, às Musas e, enfim, a Anfion, o Tebano. Ora, Anfion, que vivia em Tebas, quando essa cidade não tinha ainda muralhas, falou às pedras a linguagem da melodia e ei-las que, dóceis aos seus acordes, acorreram aos montes. Tal é, de fato, o tema de nosso quadro.
Considerem, em primeiro lugar, a lira, para verificar se a representação é exata. O chifre, o chifre do bode selvagem, segundo a expressão do poeta, serve, ao mesmo tempo, para a lira do músico e para a arma do arqueiro: negros, pontudos, capazes de lançar um golpe terrível, são estes os chifres que formam os montantes; para as partes que devem ser em madeira, foi escolhido um buxo liso, de pigmento compacto. O marfim não aparece em nenhum lugar, pois os homens ainda não conheciam nem o elefante, nem o uso que um dia iria ser feito de suas presas. A carapaça é negra; ela é pintada de acordo com o seu natural, sobre toda sua superfície círculos irregulares inscrevem escamas de tonalidade loira. Segura pelo cavalete, a parte inferior das cordas se destaca em relevo e vem ao encontro das escamas; abaixo do cavalete, dir-se-ia (não encontro nada melhor para descrevê-los) que elas estão deitadas bem esticadas sobre a lira. E Anfion, o que faz ele? Toca as cordas da lira; dá uma total atenção ao que faz; deixa entrever seus dentes, tanto quanto o necessário a um cantor; e ele canta, imagino, essa mãe fecunda de todas as coisas que pare até mesmo as muralhas espontâneas.
Uma cabeleira, por si mesma bela, erra graciosamente em torno de sua fronte, desce com os pelos do rosto ao longo da orelha, e se colore de reflexos dourados; ela dá um novo encanto à mitra, esse ornamento delicado que ressalta tão bem num tocador de lira e que alguns poetas, autores de hinos sagrados, chamavam de obra das graças. Creio de minha parte, que Hermes, tomado de amor por Amfion, presenteou-lhe, ao mesmo tempo, com a mitra e a lira. A clâmide é também um dom de Hermes; pois é de uma cor variável, cambiante, e sugere todas as cores da íris.
Sentado sobre um outeiro, Anfion bate o compasso com o pé; com a mão direita, armada com o plectro, ele bate nas cordas; ele as toca com a mão esquerda, cujos dedos estendidos se sobressaem, efeito que somente a plástica me parece capaz de produzir. Mas deixemos isso de lado. E o que fazem as pedras? Elas acorrem aos montes e se arregimentam para erguer as muralhas.

(Philostrate l’Ancien. Une galerie antique de soixante-quatre tableaux – Trad. A. Bougot. Paris. Librairie Renouard, H, Loones, Successeur. 1881).
In http://remacle.org/bloodwolf/roman/philiostrate/table.htm

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011



Joaquim Cardozo definitivo

Thiago Corrêa
Diario de Pernambuco.
Edição de sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Legado do poeta pernambucano ganha visibilidade com o relançamento do livro Poesia completa e prosa

A ideia de reeditar a obra do poeta pernambucano Joaquim Cardozo era antiga. Veio de João Cabral de Melo Neto, que, no fim da vida, pretendia reunir a obra do colega, como maneira homenagear o amigo e reverenciar o legado que influenciou a sua construção poética. Mas como o próprio Cardozo não parecia muito empenhado em publicar seus versos em vida, passaram-se cerca de 15 anos para que o projeto se tornasse real.
O plano de reunir a obra de Cardozo num único volume se tornou possível graças à parceria entre a Massangana (editora da Fundação Joaquim Nabuco) e a Nova Aguilar. O livro chegou a ser publicado em 2009, com tiragem de 2 mil exemplares, saindo na coleção Biblioteca Luso-Brasileira, da editora carioca, dedicada à publicação de autores clássicos.
Mas os versos de Cardozo acabaram ofuscados por falhas editorais, que culminaram com a polêmica em torno da omissão, nos créditos, do nome do poeta Everardo Norões como organizador. Por isso, os exemplares dessa primeira edição foram recolhidos e uma reedição corrigida de Joaquim Cardozo - Poesia completa e prosa passou a ser providenciada.
A Fundaj arcou com o prejuízo porque queria resolver o erro, tirei outra publicação que estava na fila de impressão para resolver esse problema`, explica a diretora de cultura da Fundaj, Isabela Cribari. Quase um ano e meio depois, com mais R$ 45 mil gastos pela Fundação (a primeira edição saiu por valor um pouco menor que a segunda), o livro foi reimpresso e deve ser lançado até março. ´A gente queria homenagear um poeta esquecido, que é muito importante para a literatura brasileira. Vamos comemorar, porque foi um processo difícil, fizemos três licitações, das quais duas foram desertas. O projeto era complicado, cheios de meandros, sofremos com o problema do papel bíblia`, completa Isabela.
Além da devida inserção do crédito ao organizador, a nova edição aparece com algumas modificações. Houve a exclusão da nota editorial de 25 páginas, assinada pelo coordenador-geral da Massangana, Mário Hélio; o acréscimo do Índice de primeiros versos e títulos; o Índice geral foi detalhado, com a indicação das páginas de cada poema, conto, ensaio, crítica e artigo reunido no volume. ´O teatro de Joaquim Cardozo não entrou porque já tinha sido reunido numa edição da Prefeitura do Recife`, explica Norões. Metade da tiragem de 2 mil exemplares será comercializada pela Nova Aguilar e o restante fica sob responsabilidade da Fundaj, dentro da cota de divulgação da instituição.
"Pode-se pensar que Joaquim Cardozo pensava em incluir a poesia no tecido do pensamento contemporâneo. Via o tempo no sol e na chuva, nas manhãs radiosas e nas noites estreladas, e também nas flores e frutas do país" Wilson Martins, escritor e crítico literário.