quarta-feira, 30 de março de 2011



Brilho alto, fundas raízes

Um dia Manezinho Araújo se foi de Cabo de Santo Agostinho em direção ao sul, sempre sul. De mar a mar, um sertão de permeio, a vontade de viver pedia pressa. Expressava-se na embolada, com rápidas estrofes de cocos e repentes. Até que nas noites cariocas conjugou as duas dinastias da música brasileira, no dizer de Gilberto Gil: o samba e o baião.
Manezinho Araújo faria 100 anos e deveria ter sido comemorado Brasil afora. Pouca gente se lembrou dele. Porém, Geraldo Maia organizou e editou o CD “Ladrão de purezas”, síntese do que ele, Manezinho Araújo, fez em música e agora pode ser apreciado por todos nós. Não poderia haver melhor homenagem do que a voz de Geraldo Maia, acompanhada por dois jovens músicos, Vinicius Sarmento, no violão, e Lucas dos Prazeres, na percussão. Somaram-se para uma louvação ao talento de Manezinho e o resultado foi um dos enlaces mais interessantes de nossa música contemporânea.
Como se não bastasse música à sua sede de invenção, Manezinho resolveu pintar em estilo naïf sofisticado – como o fez Heitor dos Prazeres – as coisas que vira pelos brasis adentro: barcaças, colheita de algodão, janelas com gaiolas de passarinho ou um São Francisco – único capaz de entender a vida do artista – no meio da mata, vestido de azul, cor predileta do artista, esperança ou saudade.
Nove desses quadros ilustram o álbum preparado com carinho por Geraldo, como a sugerir uma miniexposição de um artista múltiplo, a quem a música brasileira deve algumas peças hoje integradas ao nosso cancioneiro popular. Uma delas, a “Beata Mocinha”, cantada por Luiz Gonzaga, tornou-se hino dos romeiros do Juazeiro do Norte. Ouvi muitas vezes esse canto entoado nas festas do Cariri cearense, sem saber quem havia sido seu autor. A mesma ‘viagem’ do Padim Ciço da música – metáfora da morte do santo nordestino, criada pelos seus devotos – também a empreendeu Manezinho Araújo, no ano de 1993.
Geraldo Maia, ao cantar as composições de Manezinho, renovou com a tradição, utilizando arranjos e acompanhamentos que se acordaram com a predição do poeta Manuel Bandeira. Numa antiga crônica sobre Literatura de violão, o poeta comentou que o violão tinha que ser o nosso instrumento nacional e que nos sertões do Nordeste havia três coisas “cuja ressonância comove misteriosamente como se fossem elas as vozes da própria paisagem: o grito da araponga, o aboio dos vaqueiros e o descante dos violões”.
O CD “Ladrão de Purezas” se inscreve, assim, nessa linha sutil da grande música que brilha alto mas tem fundas raízes.


O 'herói' cobrado

Para quem se orgulha do passado colonial, famílias ‘tradicionais’ ou baronatos trocados a custa de baraço e cutelo, vale a pena ler um de nossos maiores historiadores, Capistrano de Abreu. Mais de três séculos depois do fato aqui narrado, numa espécie de ironia cruel, a ditadura militar criaria a famigerada Operação Bandeirantes. Eis um pequeno texto ilustrativo de Capistrano:

“No dia se São Francisco Xavier (3 de dezembro de 1637), estando celebrando a festa com missa e sermão, cento e quarenta paulistas com cento e cinquenta tupis, todos muito bem armados de escopetas, vestidos e escupis, que são ao modo de dalmáticas estofadas de algodão, com que vestido o soldado de pés à cabeça peleja seguro das setas, a som de caixa, bandeira tendida e ordem militar, entraram pelo povoado, e sem aguardar razões, acometendo a igreja, disparando seus mosquetes. Pelejaram seis horas, desde as oito da manhã até as duas da tarde.
Visto pelo inimigo o valor dos cercados e que os mortos seus eram muitos, determinou queimar a igreja, onde se acolhera a gente. Por três vezes tocaram-lhe fogo que foi apagado, mas à quarta começou a palha a arder, e os refugiados viram-se obrigados a sair. Abriram um postigo e saindo poe ele a modo de rebanho de ovelhas que sai do curral para o pasto, com espada, machete e alfanjes lhes derribavam cabeças, truncavam braços, desjarretavam pernas, atravessavam corpos. Provavam o aço de seus alfanjes em rachar meninos em duas partes, abrir-lhes a cabeça e despedaçar-lhes os membros.
Compensará tais horrores e consideração de que por favor dos bandeirantes pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?”

(In Capítulos de História Colonial e Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil.  Brasília. Ed. Universidade de Brasília. 1982.)

quinta-feira, 3 de março de 2011


E. E. Cummings (1894 - 1962)


if you like my poems let them

walk in the evening,a little behind you


then people will say

"Along this road i saw a princess pass

on her way to meet her lover(it was

toward nightfall)with tall and ignorant servants."


se você gosta de meus poemas deixe-os

passear pela noite, um pouco atrás de você,


então as pessoas vão dizer

"Por esta estrada vi passar uma princesa

indo ao encontro do amado (foi

perto do cair da noite) com altos e ignorantes serviçais.

quarta-feira, 2 de março de 2011



Entre moscas

Se a vida (não) nos deu mais do que uma cela de reclusão, façamos por ornamentá-la, ainda que mais não seja, com as sombras de nossos sonhos, desenhos e cores/mistas/esculpindo o nosso esquecimento sob a parada exterioridade dos muros(Fernando Pessoa)

A mosca cola-se ao vidro da janela. Ela é o alvo (a ‘mosca’) de meu olho, o objeto para onde converge minha atenção, embora além do vidro se estenda o verde da mata e, detrás dele, a casa no alto e outros elementos da paisagem: fios, cercas, monturos. E nos monturos, a lâmina das circunstâncias que corta nossas vidas: favela, sem esgoto ou água encanada, barulho de martelo a pregar algum segredo ou o homenzinho apregoando macaxeira.
Mosca: ao mesmo tempo alvo e inseto (‘insetalvo’, ‘alvinseto’?) da espécie dos esquizóforos, assim denominados por terem um sulco frontal a dividir a cabeça em dois hemisférios. Ela mexe-se, inquieta, alvo móvel a dar voltas em torno de si mesma. Fosse gente, seria considerada alguém que dissocia ação e pensamento, no limiar da esquizofrenia. Mas age assim certamente por ter olhos múltiplos, omatídios, oitocentos grãos translúcidos, esferas cristalinas de alta definição, como um aparelho de televisão LCD. Levam luz ao cérebro minúsculo e agora estão encandeados pela superfície brilhante do vidro que a detém no interior do quarto onde procuro descobrir sua estratégia de livramento da prisão na qual a mantenho.
Ela, a mosca, terá uma duração de, no máximo, vinte e um dias, seu ciclo vital. Terminado o movimento dessa peregrinação (que também pode ser subentendido como realidade subjetiva), ficarei sozinho, sem ter com quem partilhar o fastio, nem mesmo a restrita visão das gotas de chuva sobre as folhas das árvores próximas ou o reflexo do sol a esmorecer-se sobre o ocre dos telhados.
Quando penso nessas sensações, não as considero mera percepção ótica de um mundo que nos estrangula, a mim e à mosca. É como se estivéssemos dentro de uma bolha invisível, dentro da qual contenho meu próprio espaço-tempo.
Quanto à mosca, faço de tudo para não assustá-la, embora às vezes a perca de vista. Procuro segui-la atentamente e durante a perseguição me vem sempre à cabeça o verso do poeta espanhol Antonio Machado:

“(...) vosotras, moscas vulgares/me evocáis todas las cosas”.

Penso, então, na mosca que pousava no olho do primeiro morto que vi. O cadáver, estendido no caixão, mãos postas, rosto escondido com um lenço que de vez em quando era erguido por um curioso ou um parente próximo. Quando o morto era descoberto, a mosca voava, voava, e regressava, com insistência quase raivosa aos olhos do defunto. “Tão moço!”, repetiam todos a mesma frase ao afugentarem a mosca naquele seu voo que se limitava ao território do tamanho de uma camisa de cambraia de linho branca.
Ao “evocarem todas as coisas”, lembro também a que me perseguiu na travessia de um trecho de deserto. Havia sido prevenido de que o instinto de sobrevivência levaria a mosca a se grudar em algum de nós e a seguir-nos até o fim da viagem. Instintivamente, ela sabia que, naquelas circunstâncias, abandonar o hospedeiro significaria a morte. Descuidei-me e tornei-me seu alvo. Feri-me, de leve, de tanto tentar livrar-me do assédio e acabei por guardar uma pequena mancha vermelha, que ainda trago no rosto.
Encontrei-a de novo, a mosca, a minha mosca. Começou a saltitar sobre o livro aberto ao lado, em cima de um pedaço de frase: “to drive home the finality of death”.
Caminha com passadas microscópicas, ultrapassa o trecho “by the monotonous buzzing of the flies?” e depois de roçar meu braço esquerdo aterrissa finalmente na pequena porção de comida, de cerca de 3 gramas, que depositei sobre a folha de papel branco, tamanho A4. Assim, estará abastecida durante a rápida trajetória sobre o nosso reino particular de cinco metros quadrados: mesa, computador, pequena estante com cerca de vinte livros e metade de uma resma de papel reciclável.
Sobre o fundo branco acompanho seus pequenos gestos nervosos, seus rodopios, riscos no papel. Mexe as patas, esfrega no pouco de comida o que se poderia chamar de focinho, mas cujo termo correto é ‘probóscide’. Não pode ingerir sólidos, por isso deposita uma mistura de saliva e suco gástrico, um ínfimo vômito, na queles minúsculos resíduos. Uma digestão ‘externa’, que não consigo observar, nem mesmo com óculos. Se conseguisse examinar melhor diria o quanto de asco poderia causar-me. Mas por ser um ato tão microscópico, como tudo o que não se vê, não me dá nojo. Imagino que assim deve pensar Deus – se é que Ele existe – sobre todos nós humanos, pequenos insetos nervosos a se mexerem, sem objetivo nenhum no nosso pequeno bólido perdido no universo.
Deixo-a mais calma, a mosca, a digerir sua refeição de final de tarde. Levanto da cadeira, onde fico o dia quase todo a ler e a tentar entender os teoremas da incompletude de Gödel. Olho-a como para me despedir e penso de novo:

“(...) vosotras, moscas vulgares/me evocáis todas las cosas”.

Nenhum poema sobre moscas igual a esse de Antonio Machado. Nada de “mosca azul, asas de ouro e granada” daqueles versos do outro Machado, que certamente detestava negros, complexado, submetido a ataques epilépticos, orgulhoso de sua farda de academia, dólmã de antigas turquias. Quanto a mim, prefiro a mosca de verdade: preta, sem metáforas. A que reina sobre nossa podridão, faz brilhar a ferida. Como a mosca-varejeira: pequenos ovos- -luz, larvas esbranquiçadas sobre a úlcera na perna do cego da feira, que nos obrigava a correr para fugir de sua companhia.
Ei-la sobre o papel imaculado: simples ponto escuro sobre o branco, que tudo pode significar: sinal enigmático do texto, buraco negro das origens, fuligem final dos grandes incêndios, caractere original de alguma tradução de Camilo Pessanha. Aquele de barba toda moscas, tuberculose e concubinas, no sujo chão da China.
Desligo o ar-condicionado. Levanto da cadeira, com comichões na perna direita. Fecho a porta com cuidado. Giro a chave, para que ela não fuja durante a noite e eu não perca sua companhia, pelo menos durante os presumíveis 21 dias que ainda lhe restam.
E de repente escuto, numa espécie de murmúrio.
Ligo a grande mosca, a que não se mexe, não volteia no ar. A que mede trinta e seis polegadas, milhares de grãos translúcidos, esferas cristalinas de alta definição, que levam a escuridão ao nosso cérebro minúsculo. E agora encandeiam a noite, na qual, sozinho, confundo- -me com ela...

SOBRE O AUTOR
Everardo Norões é poeta, autor de A rua do Padre Inglês. Esse texto faz parte do seu primeiro livro de contos, ainda sem título.

In Suplemento Cultural de Pernambuco - Março de 2011