quarta-feira, 18 de maio de 2011



Suíte dos mortos,
de Domingos Alexandre

O ENTERRO

Foram-se os vivos
E ele, o morto
Ficou sozinho
Mergulhado na  paz do cemitério vazio.
Acabado  o ruído
Da terra caindo sobre o seu rosto,
Atirada  a última pá
Todos saíram apressados
Atropelando tumbas e sepulturas
Na ânsia de voltar para vida das ruas.
Deixaram-no só
E apavorado ante a escuridão do nada.
Como podiam ter tanta certeza
De que ele estava morto? 
***

Autor de um poema antológico, Bruxelas, Domingos Alexandre é um de nossos grandes poetas. O poema acima foi publicado no blog de Cicero Melo (http://ciceromelo.zip.net/).

sexta-feira, 6 de maio de 2011




Aniki Bobó, de João Cabral, esse desconhecido 

Foi Lula Arraes quem me falou de um livro de João Cabral, editado pelo Gráfico Amador, cujo título era Aniki Bobó. Encontrei a seguinte referência numa revista Continente, num texto assinado por M.P. (Marco Polo), intitulado Um ponto de efervescência cultural: “Uma das visitas que mais rendeu ao GA foi a do poeta João Cabral de Melo Neto. Ele, que já tinha uma prensa manual na qual fazia livros artesanais, em Barcelona, passou aos integrantes do Gráfico Amador todos os conhecimentos práticos que adquirira. E foi também coautor de um dos livros mais originais do grupo, o Aniki Bobó, onde há uma inversão de termos radical: um texto ilustrando desenhos. O artista plástico Paulo Bruscky conta que certa vez Aloísio Magalhães, que era muito criativo, pegou tacos de chão e barbantes para, com eles, experimentar gravuras. João Cabral ficou impressionado com aquilo e dispôs-se a escrever um texto “ilustrando” as imagens. Nasceu assim o livreto Aniki Bobó, que, segundo pesquisou Bruscky junto ao cineasta português José de Oliveira, significa brincadeira de criança, em Portugal. ‘Aquelas brincadeiras antigas, como empinar papagaio, jogar bola de gude’, explica.
O poema, em prosa, começa assim: ‘Aniki Bobó tinha de seu duas cores, o azul e o encarnado, como outros têm na vida um burro e um cavalo. Não eram o mesmo as duas cores para Aniki destemido: eram na sua vida um amigo e um inimigo. O azul era seu colchão de molas, líquidas como as do mar. Azul também eram as suas muitas lâminas de barbear. Era muito curiosa sua rara coleção, pois quando vistas de perto eram vermelhas por antecipação’. Curiosamente, o poema não consta da obras completas de João Cabral, que, quando perguntado a respeito por Bruscky, numa de suas últimas visitas ao Recife, não se lembrava mais dele.”
Aniki Bobó, foi editadopelao GráficoAmador, em 30 exemplares, numerados e assinados, datados de 1958. Acontece que Aniki Bobó é o título de um filme do grande cineasta português Manuel de Oliveira. A internet nos possibilita apreciar a obra do diretor português, que data de 1942. 

segunda-feira, 2 de maio de 2011


Como as esferas

Ramón López Velarde (1888-1921)

Menininha que eras
brevidade, redondez e cor,
como as esferas
que nos consoles
de uma sala ortodoxa mitigam o esplendor.
Menininha hemisférica e algo triste
que tuas lágrimas púberes me deste,
que no mês do Rosário
a meus olhos fingias
amapola dizendo ave-marias
e que deixavas em idílio proletário
e em minha gravata indigente,
qual um aroma dúplice, tua ternura nascente
e teu catolicismo milenário. 

Em dia de báquicos desenfreios,
me dizem que perguntas por mim; te evoco
tão pequena, que podes banhar teus plenos
encantos dentro de um pouco
de licor, porque cabe tua estátua pia
na última taça de uma cristaleira:
e revives redonda, castiça e breve
como as esferas
que nos consoles
do século dezenove
amortecem sua gala
verde ou azul ou carmesim,
e copiam, na curva que se parece a ti,
o inventário dessa morta sala.

(Ilustra: escultura de Fernando Botero)