quarta-feira, 12 de outubro de 2011



Do Ananàs Rey dos pomos.

Antonio do Rosario

 (...) Nasce, o Ananás com coroa como Rey; na casca, que parece um brocado em pinhas, tem a opa real; nos espinhos como archeyros a sua guarda; pelas insignias reais com que a natureza o produzio tão singular, de grande & fermosa estatura, tem a forma digna de imperio, entre as mais frutas do universo; mas pelas partes, & qualidades que tem para o bom governo, he Principe perfeito, porque he severo, & suave, sendo para o gosto a maior delicia; sendo tão gostoso, suave, & deleitavel, he muy severo, aspero, & cruel para os criminosos, para os que tem chagas, & feridas: rigor, & brandura a seu temdo, he o axioma do melhor governo: a severidade somente he impressão peregrina nos Principes, porque não deixão de ser homens, ainda que sejão Principes; o mais soberano timbre da magestade, he a serenidade o maior triumpho da coroa, he a clemencia, & benignidade.” (...)

In Antonio do Rosario: Frutas do Brasil. Rio de Janeiro: Fundação da Biblioteca Naional. 2008. (Fac-símile da edição de 1702). Apresentação de Marco Lucchesi.

domingo, 9 de outubro de 2011



Engana-se quem pensa que o new journalism foi inventado nos Estados Unidos em meados do século XX. De fato, seu criador foi Xenofonte, nascido na Grécia, quatro séculos antes de Cristo. Anabase, relato vivido, antes de ser história, é reportagem. Assim sugere a crônica de Roberto Arlt, publicada em janeiro de 1942, bem como a introdução ao livro de Xenofonte feita por Carlos García Gual,  conhecido escritor e helenista espanhol.
Anabase é um de meus livros preferidos e este texto de Roberto Arlt é o melhor convite à leitura do clássico grego.



Anabase ou A retirada dos dez mil

Roberto Arlt

Quatrocentos anos antes do nascimento de Cristo vivia em Atenas um jovem de boa família. Como seus pais eram ricos, sua criação foi esmerada. Quando maior, recebeu lições dos filósofos e, finalmente, converteu-se em discípulo de Sócrates.
Poderia ter gozado de todos os prazeres do século, com essa moderação que é o patrimônio dos homens virtuosos, porém um grave defeito empanava este espelho de sabedoria, e tal defeito era daqueles que não têm remédio:
Xenofonte era um curioso.
Em vez de contentar-se em passear pelos jardins, que davam ar de festa às calçadas de pedra, elucidando dialeticamente os problemas que constituíam as preocupações dos políticos da cidade ou de entregar-se a se acaparar de terras ou ir aos Pireus para contemplar como chegavam dos longes as naves com suas amplas velas pintadas, Xenofonte ansiava por saciar sua sede de conhecimento percorrendo o mundo. Se houvesse jornais naquela época teria sido jornalista. Não existindo jornais, escreveu livros e seu livro mais conhecido é a narrativa de suas aventuras na Ásia ocidental, aventura que causou admiração à Antiguidade clássica e foi conservada zelosamente pela História, por ter sido considerada um dos mais formidáveis documentos militares da época.
Refiro-me a Anabase ou A retirada dos dez mil, a primeira história documentada por um militar improvisado sobre a técnica da retirada de um exército em derrota.
Xenofonte aparece envolvido na aventura como um simples curioso.
O interesse que experimentava pelo mundo asiático, em torno do qual circulavam então as mais extraordinárias lendas, o impulsiona a embarcar em Sardes com o “Príncipe Proxenes”, que conduz 15 mil mercenários gregos para combater em companhia de Ciro contra o déspota Artaxerxes.
Xenofonte pressente que a aventura é arriscada. Pede a opinião de Sócrates, se deve ou não embarcar, mas Sócrates se abstém dizendo-lhe que consulte o oráculo de Delfos. Xenofonte, não tranquilizado pela evasiva do mestre, teme que o oráculo se manifeste contrário e então não o consulta sobre se deve ou não embarcar, mas simplesmente pergunta o que deve fazer para desfrutar de uma viagem feliz. O que, evidentemente, não é a mesma coisa.
Xenofonte embarca. Ciro é derrotado pelo persa em Cunaxa. Proxenes, seu amigo, perde a vida na batalha; Clearco, que aconselhou Xenofonte a embarcar com Proxenes, morre assassinado na emboscada que lhe foi montada por Tisafernes, e Xenofonte desperta um dia entre os sobreviventes da derrota. Estão perdidos a mais de 2.400 quilômetros da Grécia, num país bárbaro, rodeado de nações hostis que os perseguem e exterminam como cães raivosos.
A situação é terrível, Xenofonte não se deixa amedrontar. Não fora em vão discípulo do mais ilustre filósofo da Grécia. Recordando as lições de Sócrates, põe-se de pé diante dos oficiais.  Dá esperança aos desesperados, aconselha os desorientados, arenga com os pusilânimes. Palavra atrás de palavra orienta estes carniceiros profissionais para não se deixarem degolar como ovelhas na mais espantosa região do globo que o homem conhece. Não é ali que se encontram as planícies cobertas de uma erva que enlouquece os bichos e os mercenários? O vento é tão poderoso e a areia tão abundante que nas dunas se encontram exércitos de esqueletos com suas armas, aprisionados pela areia que os venceu sem combate. Todos estão espantados, mas como Xenofonte é o único que não tem medo da morte, converte-se em seu chefe natural.
A primeira conclusão técnica de Xenofonte é que não podem regressar pelo mesmo caminho pelo qual vieram porque, como estão derrotados, castigos infinitos os esperam.
Tomarão outro caminho.
Começa a odisseia. Atravessam o Tigre, em Sitace, por uma ponte de barcas, avançando durante dias, até que chegam a zonas desconhecidas, cujos habitantes são semicanibais, com reis que se ornamentam com coroas de sal-gema e em cuja morte são imolados seus cavalos, suas mulheres e seus escravos. Para atravessar os rios se valem de odres de couro cheios de vento; nas montanhas cobertas de gelo proíbe seus soldados de dormir para que não morram de frio durante o sono; finalmente chegam ao Zab, que não puderam atravessar em razão de suas águas caudalosas, até que encontram um vau e, depois de semanas de marcha, chega a Lárisa, perto de Nínive. Conhecem assim as nações mais extraordinárias, aquelas que untam seus mortos com alcatrão, que depois são montados sobre cavalos também untados de alcatrão, formando assim fantasmagóricos cemitérios que semeiam o terror entre os mais valentes; atravessam o desfiladeiro de Finik penetrando na Armênia e deixando para trás o país dos carducos, dos taocos e dos fasianos, e com os pés envoltos em trapos, seminus, famélicos, enfermos, estes dez mil homens cruzam dia e noite os países mais estranhos do orbe asiático. Por onde eles avançam fogem os camponeses. Só encontram choças vazias, mortos nos rincões.
Depois de seis meses de penúrias, estes homens desnudos, desfigurados como cadáveres, chegam a Trebizonda, terra grega, nas margens do Mar Negro. Um grito tremendo escapa dos peitos arfantes destes dez mil fugitivos. Estão a salvo.
Cumpriu-se assim, com êxito, a primeira retirada militar de que a história conserva documentada a lembrança.

(in Arlt, Roberto: El paisaje en la nubes. Buenos Aires. Fondo de Cultura Económica de Argentina. 2009).


Crime na calle Relator e Sevilha andando (2011),
último livro de João Cabral de Melo Neto
editado pela Alfaguara, Rio de Janeiro. 
Prefácio de Everardo Norões:  
A constante seta de um rio.

 Antologia editada pela Paralelo Sur Ediciones
de Barcelona, Espanha (2011). 
Organizada por Jordi Gol 
e traduzida por Miguel Cabelo.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011


O barulho nas festas de livros

Ronaldo Correia de Brito

Os livros pedem silêncio para escutarmos as vozes que falam neles. Há barulho em excesso, ameaçando calar as falas dos personagens de romances, contos, novelas e peças de teatro. Algumas vozes parecem sussurros, de tão delicadas. Como ouvi-las, com tanto barulho? Os poemas dos chineses Li Po e Tu Fu, traduzidos por Cecília Meireles, parecem água correndo nos regatos ou folhas arrastadas pelo vento, em noite de lua cheia. Como ouvi-los, com tanto barulho? Mesmo os cantos elétricos de Walt Whitman são abafados pelas caixas sonoras repetindo anúncios e comerciais. E o "Son de negros em Cuba", na voz de Federico Garcia Lorca - calor branco, fruta morta, curva de suspiro e barro -, emudecem em meio à algazarra de maracatus e sambas do Recife.
O silêncio é aonde resvalam ecos e vales, diz um verso do poeta andaluz. Os escritores necessitam dele para escutarem suas próprias vozes e se fazerem ouvir. Porém tudo conspira contra o silêncio e ninguém ouve quem escreve, lê poemas ou conta histórias. Muitas vozes falam alto nos microfones, os tambores percutem o couro e as festas para os escritores ameaçam transformar-se em carnavais e shows.
Contam que Demócrito de Abdera cegou os próprios olhos para desse modo pensar melhor. Como poderemos pensar em meio ao barulho? Os ruídos embotam os pensamentos e a poesia, nos tornam surdos à voz que brota dos livros. Por favor, façam silêncio e escutem o que os livros desejam falar. Já existem festas em excesso nesse país, três meses de carnaval, shows para milhões, jogos de futebol, rádios, televisões e aparelhos de som ligados nas casas. Quando o livro pedir silêncio, uma pausa em meio aos caos sonoro, por favor, silenciem. Um minuto que seja. Aquele minuto que pedem em reverência aos mortos. Aquele minuto pelo menos.
Mas os livros não morreram ainda, eu juro. Eles teimam em continuar vivos e pulsantes. Porém se ninguém fizer silêncio para que eles falem, com certeza calarão de vez.
Nem é preciso o silêncio absoluto das pedras, de que fala a poesia de João Cabral. Basta silêncio com menos aridez. Silêncio de escutar em silêncio a música das palavras, o engenho dos artistas, o ritmo das estrofes e parágrafos na sua música plena, sem acompanhamento de tambores, nem caixas ou gonguês. Silêncio para ouvir os que trabalham calados e um dia resolvem falar de voz viva.
O poeta Everardo Norões escreveu sobre ler cada saliência das coisas. Precisamos ler todas as palavras dos livros, com o peso que elas possuem e nos comunicam. Mas, para tanto, é necessário silêncio. 


(Publicado no magazine Terra, em 28.09.2011. Ilustração Van Gogh)