domingo, 25 de março de 2012


Cristo dentro do Tribunal de Justiça



Numa das salas de julgamento do Tribunal de Justiça de Pernambuco, cujo edifício nestes dias completa 180 anos de construção, um enorme crucifixo pende da parede. Acima dele há uma estátua da Justiça, cega, espada na mão. Nossa Constituição prega a igualdade de direitos, entre eles o de crença. E como no país não há apenas católicos, mas também muçulmanos, protestantes, judeus e pessoas de tantas outras religiões, aquela cena parece bem pouco católica.
Há de se pensar como se sente um brasileiro que professa a doutrina do Islã, quando, num órgão público, é confrontado a manifestações de uma fé que não é a sua. Ou um rabino, que por alguma razão seja levado a visitar recinto como aquele do Tribunal. Seria mais confortável se a estátua da Justiça estivesse sozinha naquela sala, com a venda nos olhos e a espada na mão, lembrando a via da imparcialidade de Salomão.
Quanto ao Cristo, para ser lembrado por aqueles que acreditam no Deus feito homem, não precisaria estar ali reproduzido em estátua. Bastaria que dentro de cada um Ele assumisse a dimensão daquele Menino Deus do poema de Fernando Pessoa, mais precisamente de seu heterônimo, Alberto Caeiro, que conta um sonho em que Jesus Cristo desce à terra tornado menino, deixando no céu um Cristo eternamente na cruz. O Poeta diz que aquela criança lhe ensinara a  atirar pedras, a roubar frutos e a ver flores. Uma criança “tão humana que é divina”, com a qual goza o segredo comum que é “o de saber por toda a parte que não há mistério no mundo e que tudo vale a pena”.
Essa Criança Nova do Poeta não carece de imagem, mesmo porque algumas representações acabam por lembrar um catolicismo de outros tempos, que deitou raízes num passado colonial de visitadores do Santo Ofício, iluminado pelas fogueiras da Inquisição, nas quais eram queimados judeus, muçulmanos e todos aqueles que não concordavam com o pensar oficial do Império português. Um catolicismo que, infelizmente, acabou entrando República adentro para se identificar com o lado mais conservador de nossa ‘elite’ nacional.
A manutenção daquela estátua no Tribunal certamente foi um ‘esquecimento’ de alguém que não observou a mudança na Constituição, nem atentou para brasileiros de outros credos. Da mesma forma que, ao lado de nossa Rua do Imperador encontra-se a Praça da República. Porque nossa memória cidadã está sempre a sofrer de arteriosclerose.
Na França, onde a república custou tanto sangue para ser instaurada, não se ouve falar de rua ou avenida com o nome de Luís XVI...

(Essa matéria é parte de um artigo publicado na Gazeta Mercantil, em 20.08.2002. Recentemente, mais de dez anos depois dessa publicação, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul aboliu a exposição de imagens de caráter religioso nas suas dependências).
Obs. A ilustração é o Cristo de Grunewald.

sexta-feira, 23 de março de 2012



wb na política

que partido
lhe franquearia a ficha de inscrição
nunca seria o anão enfurnado
na jaula dos espelhos
a manipular no jogo de xadrez
a alquimia da trapaça
a imagem autêntica do passado
é um raio, diz,
e a verdade imóvel não traduz
a matéria da história
daí o quarto de uma só janela
os dias corroídos pelo sal de ibiza
a fuga pelas escarpas dos pirineus 
a tempestade a afugentar os anjos
e a lançar seus escombros
sobre a caligrafia do último justo

quinta-feira, 8 de março de 2012




A tatuagem escreve e circunscreve o corpo. Esconde e, ao mesmo tempo, desnuda. Escorpião ou colibri, estrela ou dragão a cuspir chamas, os traços investem em colorido sobre a epiderme, delimitam um território. O desejo de anunciar o diferente anula-se na reprodução de signos que nada mais dizem.  O gesto que tem por desejo reduzir o anônimo, anuncia o banal. A reprodução técnica carimba o coletivo e o transforma em gado. O corpo, em vez de praça para expressão de alguma estética ou símbolo, metamorfoseia-se em fetiche, tal o código de barras da mercadoria na vitrine.
O olho perdeu o hábito da paisagem, foi rendido aos sinais. A velocidade da vida não permite que ele transgrida, demore-se, alongue o horizonte que deixa vislumbrar o mistério. Rapidez e clareza são as características das marcas feitas para anunciarem perfumes, automóveis, partidos políticos, gente. A massificação da moda após a disseminação do prêt-à-porter relegou a originalidade aos desfiles de modas apresentadas na televisão por modelos andróginos, onde há mais de baile de fantasia do que protótipos de vestimentas: roupas mostram-se, mas não vestem.
Diluído na multidão, sem nada que o diferencie da onda humana que cada dia mais toma conta dos espaços públicos, vestida com camisetas berrantes repletas de frases em inglês, ou com marcas que sugerem algum luxo, resta ao indivíduo recorrer ao tatoo. E, assim, fazer o contrário da tradição indígena que tinha no corpo – a exemplo dos cadiuéus – o lastro anunciador de uma estética cujos significados transcendiam o vulgar.