segunda-feira, 29 de abril de 2013





O menino delinquente precisa se tornar homem com rapidez, para ser punido ou destruído. A grande máquina não perdoa quem a transgride. Pune o pequeno traficante, mas acata o grande bandido. Prende e tortura quem a desafia, mas cobre de benesses quem com ela se acumplicia. Acobertados pelo emaranhado de leis e de normas seus subalternos se sentem levados a esquecer o humano e a louvar a Deus, de quem se acham cópias, ainda que  imperfeitas. E sob o código dessa imperfeição justificam a reprodução das leis das sociedades de classes, que julgam eternas.
Até que um dia surge a hecatombe, sob a forma do fundamentalismo ou do contra poder das milícias do narcotráfico. Ou, quem sabe, de outras formas quaisquer de revoltas desorganizadas ou de matanças descabidas. Aí chorarão a filha sequestrada, a mulher estuprada, o filho assassinado durante a tentativa de roubo do boné ou do automóvel.
Então, eles, que se guardavam indiferentes, em meio aos barulhos noturnos de suas festas no rol de algum edifício ou escutando o marulhar das rolhas de champanhe nos camarotes das grandes festas públicas, não mais se sentirão seguros em suas moradias cercadas de muros, cachorros, aparatos eletrônicos. Dar-se-ão conta, de repente, que sabem em que lugar do armário está o litro de uísque, mas ignoram onde os filhos se encontram.
Entõ, a grande máquina que não perdoa será suspendida nas enormes roldanas e lançada ao mar. E assistiremos à sua queda com um misto de medo e de júbilo. Como se em torno de nós não mais restasse senão a Grande Muralha da China.

domingo, 28 de abril de 2013





A Arca de Arturo Corcuera

Um poeta faz falar suas sombras e, ao mesmo tempo, povoa uma Arca de Noé com figuras da fundação de um mundo tão distante do monte Ararat, mas próximo do delírio que precede a criação de qualquer obra instigante. Este poeta é Arturo Corcuera. No confronto de dois mundos que conformaram seu país, o Peru, o movimento dialético de destruição e da criação engendrou monstros, mas fez desabrochar coisas nunca vistas, escritas até então impensadas. Da síntese dolorosa brotam obras primeiras, primas. Como Trilce, de Cesar Vallejo. Como o Noé delirante, de Arturo Corcuera.
Se outros de seus trabalhos haviam afirmado a dimensão de sua poética (a exemplo de Puerto de la memoria), Noé delirante é aquele no qual recorre ao seu universo mítico e desdobra-se num trabalho poético que lembra, em certos aspectos, a oficina de Montaigne: a do texto nunca acabado, burilado à guisa de testamento, e cujo intento é dizer, mais e com mais perfeição, de cada bicho, de cada objeto, de cada coisa. E de todo o incriado.
Mas o poeta Arturo Corcuera não é só livro, como alguns poetas que se limitam a lutar contra as palavras. Nele há um verbo encarnado, um apego a chão e estrela, a gente e a bicho. Sua poesia alimenta-se tanto da paixão como da ironia, vale-se dos elementos mais comuns de nossas vidas e dela poderíamos dizer como ele o fez sobre o capim: Gracias, hierba,/Naces para mitigar/Las durezas del camino.
Conhecemos Arturo Corcuera e Rosa na sua Villa de Santa Inés, em Chacaclayo, no vale do rio Rimac, arredores de Lima, lar que ele apelida morada dos duendes. O aconchego de um dia nos tornou amigos e nos fez cúmplices, a mim e a Sônia, da sua maneira de ser poeta. Era preciso ir até lá, como nos aconselhara nosso amigo comum, Thiago de Melo, para apreciar

La huerta y sus racimos,
el cielo de los pájaros,
aquella flor que passa
(la rosa es esta Rosa
que perfuma la casa).
En Santa Inés, morando
entre el cerro y el río.
Duendes, árboles, sueños:
el universo mío.



 Malabarismos



As histórias infantis se equivocam ao fazer crer aos seus leitores que o Bem sempre vence o Mal e a Sabedoria sempre derrota a Astúcia. Quase nunca é assim. 
Poucos percebem a ironia do malabarista que se exercita no sinal vermelho da avenida e diz ao proprietário do automóvel que lhe dá gorjeta (ou esmola?):
- Com isso vou comprar um carro!

Ele sabe que as acrobacias do político, do empreiteiro, do traficante serão sempre melhor recompensadas do que a alquimia do artista para transformar sofrimento em alegria ou êxtase. O malabarista transpira no cruzamento da Padre Roma com a Rosa e Silva para conseguir alguns trocados e diz aquilo sabendo que nunca terá automóvel e que as pessoas nem consideram o que ele faz como um trabalho. É difícil perceber que ele está falando sério porque nossa cultura - a mesma que nega recursos ao artista - incutiu-nos que querer é poder e com esforço sempre se consegue chegar lá. Essa ideologia do 'esforço' é a mesma que abafa o ócio criador.

Na mesma ordem de pensamento, é também um equívoco pretender que diploma confere ao titular capacidade para realizar alguma obra. Recentemente, um burocrata da cultura exigiu de um músico a certificação de cursos e diplomas para o exercício de sua profissão, como se assinaturas com firmas reconhecidas fossem mais importantes do que o exímio exercício da arte. O argumento de que a ausência de papéis justifica a negação da já pobre recompensa financeira atribuída aos artistas seria cômica se não padecesse daquela crueldade que foi tão genialmente esmiuçada por Kafka.  

Quando o músico - alguém reconhecido até por platéias estrangeiras eruditas - contou-me sua desventura com o funcionário da cultura que tentara lhe negar recursos para um trabalho sério, logo lhe contei o episódio de quando Villa Lobos chegou a Paris e, interrogado sobre quais universidades  havia frequentado, respondeu sem hesitar:

- A de Pixinguinha e João Pernambuco!

sábado, 13 de abril de 2013

 
 
Um certo goês
 
 A rua se chama Damião de Góis,
português de ascendência flamenga,
guarda-mor da Torre do Tombo,
perseguido pelo Santo Ofício,
cronista do rei D. Manuel.
É uma via estreita, quase vereda,
comparada às vastas avenidas que decompõem a cidade.
Bairro: Sommerschield;
nome também flamengo
(como Góis, quase goi).
No fim da rua não mora um anjo:
mas um sábio, indiano, cor de canela.
(Que pássaro, senão graúna,
para o negror do cabelo?)
Escritor, jornalista,
conselheiro ad hoc do presidente guerrilheiro,
é o maior conhecedor da África Austral.
Vem do outro lado do Índico.
Seu locus : Goa.
Melhor apelidar locus o lugar onde se surge:
espaço origem, simples condição:
sem pátria.
 
 Quatro séculos separam os dois cronistas:
o do Princípio e o do Fim.
O primeiro registra sucessos na Ásia:
Comentari Rerum Gestarum in India.
O segundo, rebusca anotações sobre derrotas em África,
a que se limita pelo Cabo da Boa Esperança.
E desemboca no Inferno.
 
 (No aquário, o pequeno tubarão,
entre peixes ornamentais do Lago Niassa.
O brilho das escamas daqueles que o cercam
não consegue dissuadir nosso olho.
Somente o seu negror clama, apela.
Mesmo entre os negros, ele é o mais negro:
nenhuma luz o ofusca).
 
O discurso é invertebrado,
mas múltiplo e severo:
a pontaria e a rapidez
de uma Kalashnikoff.
Há no escorrer das sílabas
algo de uma descarga de brigada ligeira:
Theirs not to reason why,
Theirs but to do and die:
Into the valley of Death.
 
 Numa mansão da avenida Kenneth Kaunda
dois homens se discutem, se descobrem:
desordenam.
O outro tem nome de pátria,
é calabrês, mas seu país é Barra do Piraí
As palavras chegam em látegos,
como as chuvas das monções.
Nenhuma pátria subverte
a água que rega o jardim dos homens.
(Somente raízes testemunham.)
 
 Into the valley of Death…
O do Princípio, o que dá nome à Rua:
a cabeça arrebentada
por algum hemisfério.
(Grande em demasia para caber o silêncio,
mínima para esconder o ruído
sinfônico das estrelas.)
Quanto ao do Fim, agarra-nos o braço,
perfura com o dedo o espaço.
Registra, em tom de segredo:
Há um vírus que não contamina
apenas a carne...
 
O saber é o maior pecado
entre todos pecados capitais.
(Maior que a soberba, a lúxúria,
a inveja. Até mesmo a bondade.)
 
Nos corredores domina o branco,
com astúcias do caçador de safári.
Desgoverna o búfalo no vale de Morogoro.
o leão na savana de Gorongosa:
a alça de mira posta,
ao dedo basta o leve toque.
Dixit De Gaulle:
A virtude do político
é a ingratidão.
 
Nem saraivada de granizos,
nem baterias antiaéreas:
o estrépito pousa no ar,
grito congelado de algum deus.
Nem o embate de corpos,
nem trovoadas
sobre os campos do Limpopo:
uma fenda, um fogo fátuo, uma ferida
há muito descrita por ele:
todas as águas correm para o Nascente:
não há ninguém para manejar comportas.
 
(Numa certa mansão
da Avenida Keneth Kaunda,
dois homens se confabulam:
buscam entrelinhas, espaços, equações
onde incrustar o átomo que se acomoda
após a refrega:
a curva de uma rede no terraço
de Barra do Piraí,
o sinuoso recuerdo
de uma Índia perdida.)
 
O estrondo é signo do desfazimento:
o grande abutre metálico
espatifa-se entre
persianas de nuvens.
Depois, o rol dos nomes,
ratos devoradores de arquivos,
miopia abnegada
de um olhar sem espelhos.
(Ponto final ou hífen?).
 
 Quatro séculos reúnem os dois cronistas:
o do Princípio e o do Futuro.
O primeiro segreda sucessos na Ásia:
Comentari Rerum Gestarum in India.
O segundo, decifra descaminhos na África
que se limita pelo Cabo:
 
o das Tormentas.

 
(No aquário, o pequeno tubarão
insinua-se entre algas.
As borbulhas ascendem em ritmo contínuo:
é o mais negro
entre os negros).