Arraes no
Palácio do Povo
A Avenida Franklin Roosevelt, onde residiu
Arraes, desemboca numa das principais ruas do centro da cidade, a Didouche
Mourad, nome de um grande herói e mártir, lugar de muitos embates durante a
famosa Batalha de Argel. Muitas vezes descemos juntos aquela rua ladeirosa, em
busca de notícias, chegadas sempre com atraso à caixa postal da Grande Poste –
o prédio de arquitetura mourisca do correio central. As comunicações eram
falhas, a vigilância policial no Brasil era cerrada, não convinha usar
endereços residenciais. Caixas postais e brasileiros que chegavam à Europa eram
as fontes de informação mais seguras.
No caminho de volta sentávamos no Café Bardo,
vizinho ao museu de etnologia do mesmo nome, para tomar um café, falar de
política, de trabalho, da situação internacional, de leituras. Arraes tinha sempre
uma história para cada circunstância, uma ilustração para cada caso. Depois da
conversa, seguíamos para seu escritório, simples: uma mesa de madeira e
estantes improvisadas, que abrigavam documentos, livros e jornais os mais
diversos, nas mais diferentes línguas. Suas anotações, numa caligrafia tortuosa
e graúda, concatenavam observações que iriam desembocar, mais tarde, no livro
publicado pela famosa editora parisiense François Maspero, Brésil, le pouvoir et le peuple, proibido no Brasil.
Eu gostava de olhar suas mãos quando ele
escrevia. Mãos delicadas que contrastavam com sua maneira quase rude; mãos de gestos
raros, que acompanhavam um falar quase silêncio, de cortes ríspidos, induzindo o
interlocutor a perseguir a linha de pensamento do estrategista nato. O raciocínio,
instintivamente dialético, nem sempre era fácil de ser alcançado por pessoas
habituadas às categorias da lógica formal.
Quando estava exposto no Palácio das Princesas,
morto, pude mais uma vez olhar suas mãos, finalmente cruzadas. E, à vista delas,
chegaram-me lembranças que a História nunca irá contar, de um exilado solitário
e firme, apesar de abandonado por muitos, até mesmo por alguns que depois voltaram
a cercá-lo no mesmo palácio que o acolheu pela última vez. Em Argel, sonhava com
um Brasil bem diferente daquele que iria encontrar no seu retorno. Nas vezes em
que o futuro lhe inquietou, certamente foi por ter pressentido que a nossa
tragédia coletiva poderia resvalar para uma quase comédia...
O carisma é um atributo especial de um indivíduo
e Arraes teve esse dom, percebido não apenas por nós, pernambucanos e
brasileiros. No exílio ele era também
observado assim, e o povo que o acolheu o considerava como um dos seus: um frére, um irmão. Fato singular, o nome Arrais, em árabe, significa cabeça,
chefe, senhor do barco.
Os argelinos que o conheceram, quando cruzarem agora
aquela esquina do Palácio do Povo, lembrar-se-ão dele e hão de murmurar, como
fazem ao pensar num irmão defunto: “Deus é o mais alto, o Misericordioso e o
Misericordiador”.
Everardo Norões
Jornal do Commercio
09.09.2005
(Fotos: Grand Poste e caixa postal)
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