A cidade do silêncio
Mesmo quando se vive numa cidade loteada por empreiteiras, o que se
ergue edificado sobre escombros poderia nos dar um mínimo de gozo. Do contrário,
a cidade beira o descalabro. Descalabro é não poder caminhar com conforto e
segurança nas calçadas, é ter que suportar o trajeto entre casa e trabalho como
um exercício de Sísifo, é o temor de ser agredido a cada esquina, é ser obrigado
a observar a patética arquitetura de nosso cotidiano. Descalabro é quando nos
sentimos desconfortáveis e ludibriados, por exemplo, ao passar por perto desses
novos parques e academias da cidade, engendrados a partir da premissa de que há
duas cidades distintas: uma feita para os
ricos, outra para os pobres.
Mas parece ser mesmo essa a lógica de nossa cidade. A que motiva a
destruição dos equipamentos coletivos, promove a imensa sujeira e o descaso. O
argumento generalizado da “falta de educação” do povo não consegue explicar a razão
de, num lugar assim, ninguém se sentir dono de nada. Nem mesmo quando certas acrobacias
políticas, feito fogos de Bengala, procuram induzir à participação em torno de
iniciativas subalternas. O engodo dos orçamentos participativos já pariu seus
mostrengos.
Basta observar festas, inaugurações, festivais, onde estão presentes populares,
políticos, intelectuais. No após de tudo, o chão estará sempre repleto de lixo,
como se a limpeza da cidadania dissesse respeito apenas aos homens de vermelho
da firma terceirizada pelo poder público. No outro lado do espelho, em algumas
repartições públicas, a mesma a sensação de desleixo, embora tudo pareça 'normal', enquanto a televisão nas salas de espera transmite novelas da Globo em vez de
programas educativos.
Então, as perguntas: Qual será o futuro desse lugar em que vivemos,
trabalhamos, morremos? Qual de seus recantos ainda é capaz de nos dar algum
prazer, relaxamento, conforto? Por que
no nosso dia a dia a mínima tarefa parece se metamorfosear num trabalho de
Hércules? Por que ao desembarcar no aeroporto e nos dirigirmos à cidade somos
tomados por uma súbita sensação de que estamos penetrando numa zona
devastada? Enfim, que futuro nos espera
num lugar onde o "ruído ao redor" parece não incomodar quem
vive em bunkers, acompanhado de seguranças, trafegando em carros blindados,
matriculando filhos em escolas privadas, enquanto o resto continua sofrendo o
desmantelo acumulado de cinco séculos?
Enquanto isso, permanecemos calados,
como se nossa cidade fosse uma espécie de fortaleza do silêncio, onde até a
crítica literária incomoda. Silêncio até mesmo daqueles que um dia recusaram aceitá-lo
como imposição à cidadania.
Mas o silêncio é véspera do grito. E se
não acontecer o grito e a mudança que ele pode engendrar, a cidadania
continuará tão deplorável quanto uma paisagem vista da Avenida Recife.