quarta-feira, 25 de setembro de 2013


Canção do Leste
 Álvaro Mutis
 Na curva da esquina
um anjo invisível espera;
uma vaga neve, um pálido fantasma
te dirá algumas palavras do passado.
Como água de acéquia, o tempo
cava em ti seu árduo trabalho
de dias e semanas,
de anos sem nome e sem lembrança.
Na curva da esquina
te seguirá esperando inutilmente
esse que não foste, esse que morreu
de tanto ser tu mesmo o que és.
Nem a mais leve suspeita,
nem a mais leve sombra
te indica o que poderia ter sido
esse encontro. E, no entanto,
ali estava a chave
do teu breve destino sobre a terra.

 

quarta-feira, 12 de junho de 2013


 
 
O menino criminoso

 
Jean Genet

 
A Radiodiffusion francesa convidou-me para participar a uma de suas emissões, chamada “Carta Branca”. Aceitei a fim de poder falar sobre a Infância criminosa. Meu texto, aceito primeiro por Fernand Pouey, acaba de ser recusado. Em lugar de orgulho, sinto certa vergonha. Tive vontade de fazer com que a voz do criminoso fosse ouvida. Não seu lamento, mas seu canto de glória. Uma vã preocupação em ser sincero impede-me isso, menos pela exatidão dos fatos do que pela obediência ao sotaque um pouco rouco que, somente ele, pode dizer minha emoção, minha verdade, a emoção e a verdade de meus amigos.

Os jornais já espalharam que um teatro foi posto à disposição de um ladrão – e de um pederasta. Não posso, portanto, falar diante de um microfone nacional. Repito que tenho vergonha. Tivesse permanecido na noite, mas à beira do dia, e acabo por recuar às trevas, das quais fazia tanto esforço para libertar-me.

O discurso que vou ler foi escrito para ser ouvido. No entanto, eu o publico, mesmo sem ter a esperança de que seja lido por aqueles que amo.

Na Radio, eu o havia precedido de um interrogatório – administrado por mim – dirigido a um magistrado, a um diretor de penitenciária, a um psiquiatra. Todos recusaram respondê-lo.

 

 

Peço que compreendam e desculpem minha emoção ao expor-lhes uma aventura que foi também a minha. Ao mistério que vocês são é preciso que contraponha e desvele o mistério das prisões infantis. Dispersas em regiões campestres de França, situadas muitas vezes nas mais elegantes, alguns desses lugares não cessaram de me fascinar. São as casas de correção, cujos nomes oficiais tão charmosos chamam-se agora: “Patronato do soerguimento moral, Centro de reeducação, Casa de recuperação da infância delinquente etc.”. A mudança de nome é, por si só, um sinal. A expressão “Casa de correção” e, algumas vezes, “Penitenciária”, tornou-se uma espécie de nome próprio, ou, mais exatamente, a designação de um lugar ideal e cruel situado profundamente no coração do menino e com uma carga de violência que os educadores tentaram atenuar. No entanto, assim espero secretamente, os meninos, apesar desses termos serem reveladores de uma tentativa de tola assepsia, reconhecem o apelo da Penitenciária ou da Prisão. Só que agora eles situam esses lugares muito mais numa região moral do que num determinado ponto do espaço. Era uma asneira lutar contra um nome pensando que com isso seria possível mudar a ideia da coisa nomeada, já que ela é, ouso dizerassim, viva e feita pelo único movimento, pelo único vaivém do elemento mais criador: os meninos delinquentes. Ou criminosos. Quero dizer ainda que esse lugar do mundo chamado por um dos nomes mencionados acima tem seu reflexo, sua imagem, seu foco na alma desses meninos. Retomarei essa ideia mais adiante.

Saint-Maurice, Saint-Hilaire, Belle-Isle, Eysse, Aniane, Montesson, Mettray são alguns dos nomes que nada representam para vocês. No entanto, na cabeça de cada menino que acabou de cometer um delito, ou um crime, eles são, de forma definitiva, a projeção de seus próprios destinos.

“Eu fui condenado ao 155”, dizem. [1]

Cometem um erro (voluntariamente), já que a conclusão do tribunal que os julga é esta: “Liberto por ter agido sem discernimento e confiado, até atingir a maioridade, a um centro de socialização...” Mas o jovem criminoso logo recusa a indulgente compreensão e a boa vontade de uma sociedade contra a qual acaba de insurgir-se cometendo seu primeiro delito. Tendo de 15 a 16 anos, ou mais jovem ainda, mas tendo chegado a uma maioridade que não foi ainda atingida por muitos de 60 anos, ele rejeita a bondade desses últimos.  Exige que sua punição seja exercida sem brandura. Exige, primeiro, que os termos que a definem traduzam uma crueldade ainda maior. É com uma espécie de vergonha que o menino confessa que a gente acabou de absolvê-lo ou que a gente o condenou a uma pena leve.  Ele deseja o rigor. Ele o exige. Dentro dele há o sonho de que a forma assumida pela punição será a de um inferno terrível e a casa de correção o lugar do mundo de onde não há retorno. De fato, dali não se sai e, quando se sai, já não se é mais o mesmo.  É um fogueira que foi saltada. E os nomes que citei não são nomes quaisquer: estão repletos de um significado e de uma carga de terror exagerada ainda mais pelos meninos. De fato, esses nomes serão a prova da violência deles, de sua força, de sua virilidade, pois é ela que pretendem conquistar. Exigem que a provação seja terrível. Talvez com a finalidade de esgotarem uma impaciente necessidade de heroísmo.

Mettray, na minha juventude, era um desses nomes de grande prestígio. Liquidada por algum imbecil, Mettray desapareceu. Creio que hoje em dia é uma colônia agrícola. Antigamente, era um lugar severo. Após chegar àquela fortaleza de loureiros e de flores – pois Mettray não era cercada de muralhas – o jovem fora-da-lei recebia, a partir daquele instante, o nome de colono e era o objeto de mil cuidados destinados a comprovar seu sucesso como criminoso. Era trancado numa cela toda pintada de preto, inclusive o teto. Depois, vestido com uma roupa célebre na região por lembrar o pavor e a ignomínia. Em seguida, e durante a sua estada, o colono passava por outras provas: brigas às vezes mortais, a rede nos dormitórios, os silêncios durante o trabalho e as refeições, as orações pronunciadas de forma ridícula, as punições do guarda, os tamancos, os pés esfolados, a ronda ao sol marcando o passo, a lata de água fria etc. Conhecíamos isso tudo em Mettray e como os ecos se correspondem, a resposta em Belle-Isle era o suplício do poço e, nas outras colônias, a fossa, a cova, a gamela vazia, o segurança, as lixeiras, a sala de disciplina.

Os colégios, as escolas, os liceus têm uma disciplina que pode parecer às pessoas sensíveis também tão severa e impiedosa. Contestamos isso ao afimar que o colégio não é feito pelos meninos: é feito para os meninos. Quanto às penitenciárias, são a completa projeção, no plano físico, do desejo de severidade implantado no coração dos jovens criminosos. Essas crueldades que vou enumerar não as imputarei aos diretores, nem aos guardas de antigamente: eles eram meras testemunhas atentas, também ferozes, mas conscientes de seu papel de adversários. Tais crueldades deviam surgir e se desenvolver necessariamente do ímpeto das crianças pelo mal.

(O mal: entendemos como essa vontade, essa audácia de prosseguir um destino contrário a todas as regras.) O menino criminoso é aquele que forçou uma porta que se abre para um lugar proibido. Ele quer que essa porta se descortine para a mais bela paisagem do mundo: exige que a prisão que mereceu seja cruel. Digna, enfim, do mal que ele se permitiu para conquistá-lo.

Há alguns anos, homens bem-intencionados tentam trazer algumas benesses a tudo isso. Esperam – e às vezes conseguem – ganhar almas para a sociedade. Permitir, segundo dizem, que ingressemos no bom caminho. Contudo, essas reformas são feitas, felizmente, apenas de forma superficial. Alteram unicamente a forma.

O que foi feito? Ao guarda deram outro nome: agente educativo. Também o vestiram com um uniforme que deve lembrar um pouco menos as roupas dos guardas de presídios. Obrigaram-no a usar menos violência física e o insulto e proibiram as surras. Dentro desse Patronato abrandaram a disciplina. Deram àqueles a que chamam de reeducados a possibilidade de escolher um ofício. Propiciaram mais liberdade no trabalho e nos jogos. Os meninos podem conversar entre eles, contatar os vigilantes ou o diretor! O esporte é incentivado. As equipes de futebol de Saint-Hilaire jogam contra as das cidadezinhas da vizinhança e os jogadores se deslocam às vezes sozinhos de uma cidade para outra. No Patronato, a imprensa é tolerada, embora selecionada. A alimentação é melhorada. Há chocolate aos domingos de manhã. Enfim, uma outra medida que deveria aprimorar a eficiência das reformas: a gíria foi banida. Em resumo, é concedida aos jovens criminosos uma vida parecida com a vida mais banal. Isso é o que é chamado recuperação.

A sociedade procura eliminar, ou a tornar inofensivos, os elementos que tendem corrompê-la. Tudo indica que busca diminuir a distância moral entre a culpa e a ideia de castigo. Tal objetivo de castração é evidente. Ela não me comove nem um pouco. De fato, se os colonos de Saint-Hilaire ou de Belle-Isle levam uma vida aparentemente parecida com a de uma escola de aprendizes, não podem esquecer que é o mal que os reúne naquele lugar particular. E ao ficar mantida em segredo, não percebida, esse sentimento preenche cada uma das intenções de cada criança.

A essa gíria habitual que lhes foi proibida foi substituída pelos colonos por outra, mais sutil ainda e que, em razão de um mecanismo que não posso explicar diante desse microfone, se acrescenta a gíria de Mettray. Em Saint-Hilaire, um dos meninos que um dia eu havia seduzido, me disse:

“Quando eu lhe digo que o colega fugiu, não repita ao diretor que eu disse que ele estava biché.” [2]

Ele largou a palavra sem querer. Era a mesma que empregávamos em Mettray para falar do guri que se evade, que foge, aquele que os camponeses veem correr no campo como um cervo. Eu estava a par de uma linguagem secreta, mais sábia do que a que se pretendia abolir, e pergunto-me se ela não servia para expressar sentimentos cuidadosamente escondidos. Os educadores têm a ingenuidade e a mesma benevolência de um crente. Um dia, o diretor de um dos Patronatos mostrou-me no seu escritório uma panóplia da qual parecia orgulhar-se: cerca de vinte facas tomadas aos meninos.

“Senhor Genet, disse-me, a Administração obriga-me a tomar deles essas facas. Obedeço, mas, olhe, o senhor pode me dizer por que são perigosas? São feitas de folha-de-flandres! Com isso não se pode matar ninguém!”

Será que ignorava que, afastando de seu destino prático, o objeto se transforma, torna-se um símbolo? Sua forma muda algumas vezes: diz-se que foi estilizado. É então que esse objeto age surdamente e na alma das crianças cumpre os mais terríveis estragos. Enfiado num colchão de palha à noite, ou escondido na dobra de um casaco, de uma calça – não para maior comodidade, mas para que fique junto ao órgão do qual é o símbolo profundo – torna-se o próprio ícone do assassinato que o menino não cometerá, mas que fecundará seus sonhos e o encaminhará, assim espero, às manifestações mais criminosas. Para que serve, portanto, que o tomem? O menino elegerá como símbolo do assassinato outro objeto, de aparência mais benigna, e se dele for novamente retirado, guardará dentro dele, preciosamente, de uma forma ainda mais precisa, a  imagem da arma.

O mesmo diretor mostrou-me a equipe de escoteiros que havia formado a fim de recompensar os mais dóceis. Vi uma dúzia de meninos sonsos e feios, que se deixaram cair na armadilha das boas intenções. Cantaram ridículos cantos que nem de longe tinham a potência evocadora das cantigas sentimentais ou obscenas entoadas à noite nos dormitórios e nas celas. Olhando esses doze meninos, era claro que nenhum deles seria escolhido, eleito, para participar de alguma expedição audaciosa, nem que fosse apenas imaginária. Mas eu sabia que no interior da Penitenciária havia, apesar dos educadores, grupos, ou melhor, bandos, cujos laços, a cola que os aglutinava, eram a amizade, a audácia, a astúcia, a insolência, o gosto pela preguiça, um ar no rosto às vezes sombrio e alegre, esse gosto pela aventura contra todas as regras do Bem.

Peço desculpas por empregar uma linguagem aparentemente tão pouco precisa. Levem em consideração que estou tentando definir uma atitude moral e justificá-la. Reconheço querer, sobretudo, interpretá-la contra vocês. Mas não são vocês os primeiros a falar da “Potência das Trevas”, do “obscuro poder do Mal”? Vocês não temem a metáfora quando ela pode convencer. Ora, eu a utilizo para falar de maneira mais eficaz dessa parte noturna do homem que não se pode explorar, na qual ninguém pode engajar-se se não estiver armado, untado, perfumado, se não estiver cercado de todos os ornamentos da linguagem. Mas, sobretudo, quando se busca conseguir o Bem (observem que distingo rapidamente o Bem do Mal, mas, de fato, são categorias que somente vocês podem distinguir fora do tempo), se se procura obter o Bem, sabe-se aonde se vai e o que é o Bem, e que a sanção será benéfica. Mas quando se trata do Mal nunca se sabe do que se fala. No entanto, sei que ele é o único a poder suscitar à minha escrita o entusiasmo verbal, sinal da adesão de meu coração.

De fato, não conheço outro critério da beleza de um ato, de um objeto, de um ser, senão o canto que o Mal suscita dentro de mim, e que eu traduzo através das palavras a fim de comunicar a vocês: a isso chamo de lirismo. Se meu canto é belo, se ele perturba, será que ousariam dizer que é vil aquilo que o inspira?  Poderiam, por acaso, pretender que existem palavras há muito tempo destinadas a exprimir as mais altivas atitudes, e que são aquelas a que eu recorro para que a mais baixa pareça a mais altiva? Posso responder que minha emoção reclamava justamente essas palavras e que elas vêm servi-la de forma muito natural.

Chamem, pois, de inconsciência, se a alma de vocês é pequena, o movimento que leva o menino de quinze anos ao delito ou ao crime; quanto a mim, chamo a isso de outro nome.  Pois é preciso uma grande garra, uma tremenda coragem para enfrentar uma sociedade tão forte, instituições tão severas, leis protegidas por uma polícia cuja força reside tanto no temor fabuloso, mitológico, informe, que ela instala na alma dos meninos, quanto na sua organização.

O que conduz esses meninos ao crime é o sentimento romântico, isto é, a projeção de si mesmo na mais magnífica, a mais audaciosa, enfim, a mais perigosa das vidas. Traduzo por eles, pois eles têm o direito de utilizar uma linguagem que os ajude a se aventurar... Onde, vocês acreditam? Não sei. Eles também não sabem, mesmo se no mundo dos sonhos lhes parece que está claro, será sempre um lugar fora do mundo de vocês. E eu me pergunto se eles são perseguidos por despeito ou porque a vocês eles menosprezam e rejeitam.

A vocês, não aconselho nada. Desde que comecei a falar não é a educadores a quem me dirijo, mas a culpados. Para a sociedade e a favor dela não pretendo inventar qualquer dispositivo novo a fim de que ela se proteja. Confio nela: pois saberá sozinha resguardar-se do precioso perigo que são os meninos criminosos. É a eles que falo. A eles peço que não se constranjam pelo que fizeram e que conservem dentro deles, intacta, a revolta que os fez tão belos. Não há remédios, assim espero, contra o heroísmo. Mas, atenção, se houver entre os bravos cidadãos que me ouvem alguns que não desligaram o rádio ao me ouvir, saibam que é preciso que assumam até o fim a vergonha, a infâmia de serem almas bem-intencionados e jurem que serão descarados até o fim e serão cruéis, a fim de aguçar uma crueldade cujo resplendor brotará desses meninos.

Aquele que pela brandura ou privilégios tenta atenuar ou abolir a revolta destrói para si todas as chances de salvação. E ninguém pode perdoar o crime se não for primeiro culpado e condenado.

Essas espécies de aforismos parecem suscitadas por esse lirismo sobre o qual falei. Concordo. Para enunciá-las apoio-me sobre uma única autoridade: a dor que tive de suportar para lhes propor seu contrário. Mas sabem sobre o que se baseiam as regras morais de vocês? Então, sofram, pois aqui está um poeta, que é também um inimigo e lhes fala como poeta e como inimigo.

O único meio que terão os grandes homens, as pessoas honestas, de salvaguardar alguma beleza moral, é a de recusar toda piedade aos meninos que eles não toleram. Pois não pensem, Senhores, Senhoras, Senhoritas, que é suficiente debruçar-se com solicitude, indulgência e compreensão sobre o menino criminoso para ter o direito à afeição e à gratidão dele: é preciso ser essa criança, é preciso também que vocês sejam o crime e o santifiquem através de uma vida magnífica, isto é, através da audácia de romper com todo o poder do mundo. Já que estamos divididos – a partir do momento em que queremos e ousamos essa ruptura – entre não culpados (eu não digo inocentes), entre não culpados como vocês e os culpados que somos, saibam que é toda uma vida que irá conduzir para esse lado do campo em que vocês pensam poder, sem risco e com o conforto moral, estender-nos uma mão amiga. Quanto a mim, escolhi: ficarei do lado do crime. Ajudarei os meninos não a voltar às suas casas, às usinas, às escolas, às leis e sacramentos de vocês, mas a violá-los. Ah! Temo não ter agora mais essa mesma virtude, pelo fato de não ter sido apenas um lapso dos organizadores o convite que me fizeram para que lhes fizesse esta palestra, mas porque me foi concedido falar a uma Radio tão facilmente.

Os jornais mostram ainda hoje fotografias de cadáveres transbordando de depósitos ou espalhados nas planícies, cravados em arames farpados, em fornos crematórios; mostram unhas arrancadas, peles tatuadas e curtidas para os abajures: são os crimes hitleristas. Mas ninguém percebeu que, desde sempre, nas prisões de meninos, nas prisões de França, torturadores martirizam crianças e homens. Do ponto de vista da justiça mais que humana, ou apenas humana, não é importante saber se uns são inocentes e os outros culpados. Aos olhos dos alemães, os franceses eram culpados. Fomos tão maltratados na prisão e de maneira tão covarde que tenho inveja das torturas de vocês. Pois são iguais ou melhor do que as que aconteceram conosco. Sob a ação do calor a planta se desenvolveu.  Já que ela foi semeada pelos burgueses que fizeram as prisões de pedra, com seus guardas de carne e de espírito, rejubilo-me ao ver, enfim, o semeador devorado. Os bravos cidadãos aplaudiam aqueles que são hoje um nome dourado gravado sobre o mármore, enquanto, com indiferença, viam-nos passar com algemas nos punhos e um tira batendo em nossas costelas. Uma única bofetada de seus gendarmes foi vivificada pelo sangue ardente dos heróis do Norte e desenvolveu-se até se tornar uma planta maravilhosa de beleza, de tato e de distinção, uma rosa cujas pétalas tronchas, recurvadas, mostrando o encarnado e o rosa sob um sol do inferno foram batizadas com nomes terríveis: Maïdenek, Belsen, Auschwitz, Mauthausen, Dora.[3] Tiro meu chapéu.

Continuaremos a ser o remorso de vocês. Sem nenhuma outra razão a não ser a de embelezar nossa aventura, porque sabemos que a beleza dessa aventura depende da distância que nos separa, pois onde aportamos os cais não são diferentes, mas nas praias bem ancorados percebemos o quanto vocês são pequenos, magrelos, ranzinzas e o quanto são impotentes. Aliás, rejubilem-se. Se os maldosos, os cruéis, representam a força contra a qual vocês lutam, queremos ser essa força do mal. Seremos a matéria que resiste e sem a qual não haveria artistas.

Conversas românticas!, vocês podem dizer assim.

Ora, sei que a moral em nome da qual perseguem esses meninos não é assumida por vocês. Não os reprovo por isso. O mérito de vocês consiste em professar princípios que tendem a comandar suas vidas. Mas vocês não têm a força suficiente nem para se dedicar totalmente à virtude, nem totalmente ao Mal. Pregam uma coisa e desaprovam a outra da qual dependem.  Reconheço esse senso prático.  Ah! Não posso elogiá-lo. Acusem-me, pois, de lirismo! Mas se acontecer de um de seus juízes, de um escrivão de tribunal ou de um diretor de prisão conseguir fazer eclodir e erguer-se do meu peito um canto, é a vocês, senhores, que prevenirei em primeiro lugar.

Sua literatura, suas belas artes, seus divertimentos noturnos, celebram o crime. O talento de seus poetas glorificou o criminoso que na vida real vocês odeiam. Padeçam, por sua vez, o nosso desprezo pelos seus poetas e artistas.

Podemos dizer hoje em dia que é preciso muita presunção ao comediante que ousa fingir no palco um assassinato, quando há, a cada dia, crianças e homens cujo crime, mesmo sem findar em morte, faz pesar sobre eles o desprezo ou o delicioso perdão de vocês. Cada um desses criminosos deve administrar seu próprio ato. É preciso que dele obtenha os recursos de sua vida moral, que a organize em torno dele mesmo, que dela obtenha aquilo que a de vocês lhe recusa. Por si – e por si só e por um tempo muito breve, pois vocês têm o poder de cortar-lhe a cabeça – ele se torna um herói tão belo quanto aqueles dos livros com os quais vocês se emocionam.  Se ele vive, para continuar a viver consigo mesmo lhe é preciso mais talento do que ao poeta mais talentoso.

No entanto, os heróis que preenchem os livros, as tragédias, os poemas, os quadros de vocês, continuam a ser o ornamento da vida de vocês, enquanto aqueles que serviram de modelos para tudo isso são desprezados. Vocês estão certos: eles recusam a mão estendida.

Aqueles que me escutam, se viram o filme Sciuscià, devem ter ficado emocionados pelo jogo delicado de sentimento dos meninos ligados uns aos outros pelo amor mais sutil. Admiraram a aventura que eles ousaram viver, mas ninguém sonhará que existem esses heróis charmosos na própria vida. Que eles roubam cheques verdadeiros dos verdadeiros pais. Sem dúvida, o que se chama de talento dos comediantes nos possibilitou belas imagens; no entanto, aqueles que lhes serviram de modelos são os que sofreram de verdade, sangraram, choraram (mais raramente) e a glória do mundo lhes foi recusada.  Vocês suportam o heroísmo quando é domesticado (observo que os que fazem charme, seus artistas, domesticam o heroísmo para vocês, mantendo-os à distância). Vocês ignoram o heroísmo na sua verdadeira natureza carnal, o mesmo que ele sofre no cotidiano. A verdadeira grandeza roça vocês, mas é ignorada, porque preferem o fingimento.

Ora, se as crianças têm a audácia de dizer não, castiguem-nas. Sejam duros a fim de que elas não poupem vocês. Mas há muito tempo vocês trapaceiam. Nos seus tribunais, nos seus juizados, já nem é mais observada a cerimônia do ritual – não porque vocês não a tenham substituído por uma crueldade mais íntima, uma crueldade de terno e gravata, se ouso dizer assim – mas, por grave desleixo, chegam ao pretório com toga remendada, cujos forros não são nem mais de seda, mas de raiom ou percalina. Assim, vocês devem aplicar todas as regras do código e, antes de qualquer coisa, as mais formalistas. O menino criminoso não acredita mais na dignidade de vocês, pois percebeu que era feita de uma presilha desbotada, de um galão descosturado, de um forro desfiado. O lustre, a poeira e a pobreza de suas sessões desolam-no. Ele está a ponto de oferecer-lhes um pouco de majestade de que sabe ser capaz de obter numa sessão mais solene à qual comparece em segredo enquanto vocês continuam o simulacro sob seus olhos infantis. Por pouco a familiaridade levará vocês ao ponto acariciar-lhe o rosto, de tocar-lhe o queixo, se não tiverem receio de que ele os acuse, não de indulgência paternal, mas de abomináveis sentimentos.

Parece brincadeira? Meu humor pode parece grosseiro. Estão certos de que vão salvar essas crianças. Felizmente, à beleza dos marginais mais idosos que eles admiram, aos orgulhosos assassinos, vocês não poderão nunca oferecer-lhes em troca a não ser guardas ridículos, apertados em uniformes mal costurados e mal ajustados. Nenhum de seus funcionários poderia com sucesso levar essas crianças às aventuras nas quais elas foram iniciadas. Nada substituirá a sedução dos fora-da-lei, pois o ato criminoso tem mais importância do que qualquer outro, já que é por ele que nos opomos a uma força tão grande, tanto moral quanto física.

Vocês acreditam, também, na beleza de Vacher, na de Weidmann, na de Ange Soleil.[4] Protesto contra essa afirmação: “...havia neles maravilhosas possibilidades das quais poderiam ter retirado proveito...”. Eis uma linguagem que somente vocês podem utilizar, a da Sociedade. Mas ficariam chateados se os interrogasse com rigor. Eles retiraram deles mesmos as mais maravilhosas possibilidades.

Quanto a vocês, se não conseguirem conquistar esses meninos através de docilidades, resta-lhes curá-los com seus psiquiatras. A respeito deles, bastaria colocar-lhes algumas perguntas simples e mil vezes postas. Se a função deles consiste em modificar o comportamento moral das crianças, seria para conduzi-los a que moral? Trata-se daquela moral ensinada nos manuais escolares? Mas o homem de ciência não a levaria a sério. Trata-se de uma moral particular, elaborada por cada médico? Neste caso, de onde forjou sua autoridade?

Qual a razão dessas perguntas se elas vão ser escamoteadas? Sei que se trata da moral comum e a psiquiatria se nutre dela, dando às crianças o belo nome de desadaptados. O que posso responder? Às velhacarias de vocês responderei sempre com a minha astúcia.

Hoje, que não sei por que razão foi permitido a um poeta, que foi um desses meninos, falar nesse microfone, quero dizer mais uma vez minha ternura por esses homenzinhos sem piedade. Mas não tenho mais ilusões. Falo no vazio e na treva. Nem que seja apenas para mim mesmo quero continuar a insultar os insultuosos.

 (in Genet, Jean: Œeuvres complètes V. Paris: Gallimard. 1979). A primeira edição é de 1949.






[1] N.t.: Mencionamos um dos artigos do Código Penal brasileiro, citado pelos menores quando detidos.
[2] Biché é palavra francesa, derivada de biche (cervo), animal veloz que vive no campo, dav família dos cervídeos. Aqui usa-se o termo ‘corrido’ para designar o fugitivo.
[3] Nomes de campos de concentração nazistas.
[4] Nomes de conhecidos criminosos franceses.

terça-feira, 28 de maio de 2013


 
A cidade do silêncio

 A cidade dos livros não pode ser incompatível com a cidade de concreto, da mesma forma que o andar do passeante não pode se contrapor ao do trabalhador com pressa e horário. A cidade não é apenas lugar. É nela que ideias se formam e os homens se transformam. A cidade, o nome diz, é território do cidadão. Não apenas o que aperta o botão do voto, mas o que protesta ao pressentir que alguma coisa perturba a ordem das ruas e das coisas. Ruas que não deveriam ser depósitos de dejetos, mas percursos agradáveis que, em troca do esforço do homem, pudessem oferecer-lhe prazer estético e a alegria de quem passa por elas.

Mesmo quando se vive numa cidade loteada por empreiteiras, o que se ergue edificado sobre escombros poderia nos dar um mínimo de gozo. Do contrário, a cidade beira o descalabro. Descalabro é não poder caminhar com conforto e segurança nas calçadas, é ter que suportar o trajeto entre casa e trabalho como um exercício de Sísifo, é o temor de ser agredido a cada esquina, é ser obrigado a observar a patética arquitetura de nosso cotidiano. Descalabro é quando nos sentimos desconfortáveis e ludibriados, por exemplo, ao passar por perto desses novos parques e academias da cidade, engendrados a partir da premissa de que há duas cidades distintas: uma feita para os  ricos, outra para os pobres.

Mas parece ser mesmo essa a lógica de nossa cidade. A que motiva a destruição dos equipamentos coletivos, promove a imensa sujeira e o descaso. O argumento generalizado da “falta de educação” do povo não consegue explicar a razão de, num lugar assim, ninguém se sentir dono de nada. Nem mesmo quando certas acrobacias políticas, feito fogos de Bengala, procuram induzir à participação em torno de iniciativas subalternas. O engodo dos orçamentos participativos já pariu seus mostrengos.

Basta observar festas, inaugurações, festivais, onde estão presentes populares, políticos, intelectuais. No após de tudo, o chão estará sempre repleto de lixo, como se a limpeza da cidadania dissesse respeito apenas aos homens de vermelho da firma terceirizada pelo poder público. No outro lado do espelho, em algumas repartições públicas, a mesma a sensação de desleixo, embora  tudo pareça 'normal', enquanto a  televisão nas salas de  espera transmite novelas da Globo em vez de programas educativos.

Então, as perguntas: Qual será o futuro desse lugar em que vivemos, trabalhamos, morremos? Qual de seus recantos ainda é capaz de nos dar algum prazer, relaxamento, conforto?   Por que no nosso dia a dia a mínima tarefa parece se metamorfosear num trabalho de Hércules? Por que ao desembarcar no aeroporto e nos dirigirmos à cidade somos tomados por uma súbita sensação de que estamos penetrando numa zona devastada?  Enfim, que futuro nos espera num lugar onde o "ruído ao redor" parece não incomodar quem vive em bunkers, acompanhado de seguranças, trafegando em carros blindados, matriculando filhos em escolas privadas, enquanto o resto continua sofrendo o desmantelo acumulado de cinco séculos?

Enquanto isso, permanecemos calados, como se nossa cidade fosse uma espécie de fortaleza do silêncio, onde até a crítica literária incomoda. Silêncio até mesmo daqueles que um dia recusaram aceitá-lo como imposição à cidadania.

Mas o silêncio é véspera do grito. E se não acontecer o grito e a mudança que ele pode engendrar, a cidadania continuará tão deplorável quanto uma paisagem vista da Avenida Recife.

 (Ilustração: Oswaldo Guayasamin)

segunda-feira, 13 de maio de 2013


Arraes no Palácio do Povo
 O Palais du Peuple – Palácio do Povo – ocupa um quarteirão da cidade de Argel e faz esquina com a Avenida Franklin Roosevelt, uma das artérias mais movimentadas da cidade. O palácio, como quase todo o casario ao redor, é caiado de branco, com portas e janelas pintadas de azul. Ali, no número 21, Miguel Arraes, governador de Pernambuco, banido pelo regime militar, inaugurou, em 1965, um exílio de 15 anos. O destino assim o quis. Conforme dizem os árabes: Maktub, estava escrito. Tendo recusado submeter-se à vontade dos militares e jurado honrar o cargo que o povo pernambucano lhe outorgara, aquele palácio certamente surgira a Arraes como uma espécie de metáfora. Os aposentos anexos do Palácio do Povo, retomado dos franceses após sete anos de uma das guerras coloniais mais violentas, serviram para abrigar, por um dos acasos da História, aquele que, durante toda a sua vida, centrara o seu pensamento sobre o destino de um outro povo, o povo brasileiro.

A Avenida Franklin Roosevelt, onde residiu Arraes, desemboca numa das principais ruas do centro da cidade, a Didouche Mourad, nome de um grande herói e mártir, lugar de muitos embates durante a famosa Batalha de Argel. Muitas vezes descemos juntos aquela rua ladeirosa, em busca de notícias, chegadas sempre com atraso à caixa postal da Grande Poste – o prédio de arquitetura mourisca do correio central. As comunicações eram falhas, a vigilância policial no Brasil era cerrada, não convinha usar endereços residenciais. Caixas postais e brasileiros que chegavam à Europa eram as fontes de informação mais seguras.

No caminho de volta sentávamos no Café Bardo, vizinho ao museu de etnologia do mesmo nome, para tomar um café, falar de política, de trabalho, da situação internacional, de leituras. Arraes tinha sempre uma história para cada circunstância, uma ilustração para cada caso. Depois da conversa, seguíamos para seu escritório, simples: uma mesa de madeira e estantes improvisadas, que abrigavam documentos, livros e jornais os mais diversos, nas mais diferentes línguas. Suas anotações, numa caligrafia tortuosa e graúda, concatenavam observações que iriam desembocar, mais tarde, no livro publicado pela famosa editora parisiense François Maspero, Brésil, le pouvoir et le peuple, proibido no Brasil.

Eu gostava de olhar suas mãos quando ele escrevia. Mãos delicadas que contrastavam com sua maneira quase rude; mãos de gestos raros, que acompanhavam um falar quase silêncio, de cortes ríspidos, induzindo o interlocutor a perseguir a linha de pensamento do estrategista nato. O raciocínio, instintivamente dialético, nem sempre era fácil de ser alcançado por pessoas habituadas às categorias da lógica formal.

Quando estava exposto no Palácio das Princesas, morto, pude mais uma vez olhar suas mãos, finalmente cruzadas. E, à vista delas, chegaram-me lembranças que a História nunca irá contar, de um exilado solitário e firme, apesar de abandonado por muitos, até mesmo por alguns que depois voltaram a cercá-lo no mesmo palácio que o acolheu pela última vez. Em Argel, sonhava com um Brasil bem diferente daquele que iria encontrar no seu retorno. Nas vezes em que o futuro lhe inquietou, certamente foi por ter pressentido que a nossa tragédia coletiva poderia resvalar para uma quase comédia...

O carisma é um atributo especial de um indivíduo e Arraes teve esse dom, percebido não apenas por nós, pernambucanos e brasileiros.  No exílio ele era também observado assim, e o povo que o acolheu o considerava como um dos seus: um frére, um irmão. Fato singular, o nome Arrais, em árabe, significa cabeça, chefe, senhor do barco.

Os argelinos que o conheceram, quando cruzarem agora aquela esquina do Palácio do Povo, lembrar-se-ão dele e hão de murmurar, como fazem ao pensar num irmão defunto: “Deus é o mais alto, o Misericordioso e o Misericordiador”.
Everardo Norões

Jornal do Commercio 09.09.2005
(Fotos: Grand Poste e caixa postal)

terça-feira, 7 de maio de 2013

 
Como o touro
 
Miguel Hernández
 
Como o touro fui feito para o luto
e a dor, como o touro está marcado
por um ferro infernal o meu costado
e por vara nos vazios com um fruto.
 
Como o touro descobre diminuto
todo meu coração desmesurado,
e do rosto do beijo enamorado,
como o touro o teu amor disputo.
 
Como o touro cresço no castigo,
a língua no coração tenho banhada
e levo ao colo um vendaval sonoro.
 
Como o touro te sigo e te persigo,
e deixas meu desejo em uma espada,
como o touro burlado, como o touro

segunda-feira, 29 de abril de 2013





O menino delinquente precisa se tornar homem com rapidez, para ser punido ou destruído. A grande máquina não perdoa quem a transgride. Pune o pequeno traficante, mas acata o grande bandido. Prende e tortura quem a desafia, mas cobre de benesses quem com ela se acumplicia. Acobertados pelo emaranhado de leis e de normas seus subalternos se sentem levados a esquecer o humano e a louvar a Deus, de quem se acham cópias, ainda que  imperfeitas. E sob o código dessa imperfeição justificam a reprodução das leis das sociedades de classes, que julgam eternas.
Até que um dia surge a hecatombe, sob a forma do fundamentalismo ou do contra poder das milícias do narcotráfico. Ou, quem sabe, de outras formas quaisquer de revoltas desorganizadas ou de matanças descabidas. Aí chorarão a filha sequestrada, a mulher estuprada, o filho assassinado durante a tentativa de roubo do boné ou do automóvel.
Então, eles, que se guardavam indiferentes, em meio aos barulhos noturnos de suas festas no rol de algum edifício ou escutando o marulhar das rolhas de champanhe nos camarotes das grandes festas públicas, não mais se sentirão seguros em suas moradias cercadas de muros, cachorros, aparatos eletrônicos. Dar-se-ão conta, de repente, que sabem em que lugar do armário está o litro de uísque, mas ignoram onde os filhos se encontram.
Entõ, a grande máquina que não perdoa será suspendida nas enormes roldanas e lançada ao mar. E assistiremos à sua queda com um misto de medo e de júbilo. Como se em torno de nós não mais restasse senão a Grande Muralha da China.

domingo, 28 de abril de 2013





A Arca de Arturo Corcuera

Um poeta faz falar suas sombras e, ao mesmo tempo, povoa uma Arca de Noé com figuras da fundação de um mundo tão distante do monte Ararat, mas próximo do delírio que precede a criação de qualquer obra instigante. Este poeta é Arturo Corcuera. No confronto de dois mundos que conformaram seu país, o Peru, o movimento dialético de destruição e da criação engendrou monstros, mas fez desabrochar coisas nunca vistas, escritas até então impensadas. Da síntese dolorosa brotam obras primeiras, primas. Como Trilce, de Cesar Vallejo. Como o Noé delirante, de Arturo Corcuera.
Se outros de seus trabalhos haviam afirmado a dimensão de sua poética (a exemplo de Puerto de la memoria), Noé delirante é aquele no qual recorre ao seu universo mítico e desdobra-se num trabalho poético que lembra, em certos aspectos, a oficina de Montaigne: a do texto nunca acabado, burilado à guisa de testamento, e cujo intento é dizer, mais e com mais perfeição, de cada bicho, de cada objeto, de cada coisa. E de todo o incriado.
Mas o poeta Arturo Corcuera não é só livro, como alguns poetas que se limitam a lutar contra as palavras. Nele há um verbo encarnado, um apego a chão e estrela, a gente e a bicho. Sua poesia alimenta-se tanto da paixão como da ironia, vale-se dos elementos mais comuns de nossas vidas e dela poderíamos dizer como ele o fez sobre o capim: Gracias, hierba,/Naces para mitigar/Las durezas del camino.
Conhecemos Arturo Corcuera e Rosa na sua Villa de Santa Inés, em Chacaclayo, no vale do rio Rimac, arredores de Lima, lar que ele apelida morada dos duendes. O aconchego de um dia nos tornou amigos e nos fez cúmplices, a mim e a Sônia, da sua maneira de ser poeta. Era preciso ir até lá, como nos aconselhara nosso amigo comum, Thiago de Melo, para apreciar

La huerta y sus racimos,
el cielo de los pájaros,
aquella flor que passa
(la rosa es esta Rosa
que perfuma la casa).
En Santa Inés, morando
entre el cerro y el río.
Duendes, árboles, sueños:
el universo mío.