O menino criminoso
Jean Genet
A Radiodiffusion francesa convidou-me para participar a uma de suas
emissões, chamada “Carta Branca”. Aceitei a fim de poder falar sobre a Infância
criminosa. Meu texto, aceito primeiro por Fernand Pouey, acaba de ser recusado.
Em lugar de orgulho, sinto certa vergonha. Tive vontade de fazer com que a voz
do criminoso fosse ouvida. Não seu lamento, mas seu canto de glória. Uma vã
preocupação em ser sincero impede-me isso, menos pela exatidão dos fatos do que
pela obediência ao sotaque um pouco rouco que, somente ele, pode dizer minha
emoção, minha verdade, a emoção e a verdade de meus amigos.
Os jornais já espalharam que um teatro foi posto à disposição de um
ladrão – e de um pederasta. Não posso, portanto, falar diante de um microfone
nacional. Repito que tenho vergonha. Tivesse permanecido na noite, mas à beira
do dia, e acabo por recuar às trevas, das quais fazia tanto esforço para libertar-me.
O discurso que vou ler foi escrito para ser ouvido. No entanto, eu o publico,
mesmo sem ter a esperança de que seja lido por aqueles que amo.
Na Radio, eu o havia precedido de um interrogatório – administrado por
mim – dirigido a um magistrado, a um diretor de penitenciária, a um psiquiatra.
Todos recusaram respondê-lo.
Peço que compreendam e desculpem
minha emoção ao expor-lhes uma aventura que foi também a minha. Ao mistério que
vocês são é preciso que contraponha e desvele o mistério das prisões infantis.
Dispersas em regiões campestres de França, situadas muitas vezes nas mais
elegantes, alguns desses lugares não cessaram de me fascinar. São as casas de
correção, cujos nomes oficiais tão charmosos chamam-se agora: “Patronato do
soerguimento moral, Centro de reeducação, Casa de recuperação da infância
delinquente etc.”. A mudança de nome é, por si só, um sinal. A expressão “Casa
de correção” e, algumas vezes, “Penitenciária”, tornou-se uma espécie de nome
próprio, ou, mais exatamente, a designação de um lugar ideal e cruel situado
profundamente no coração do menino e com uma carga de violência que os
educadores tentaram atenuar. No entanto, assim espero secretamente, os meninos,
apesar desses termos serem reveladores de uma tentativa de tola assepsia,
reconhecem o apelo da Penitenciária ou da Prisão. Só que agora eles situam esses
lugares muito mais numa região moral do que num determinado ponto do espaço.
Era uma asneira lutar contra um nome pensando que com isso seria possível mudar
a ideia da coisa nomeada, já que ela é, ouso dizerassim, viva e feita pelo
único movimento, pelo único vaivém do elemento mais criador: os meninos
delinquentes. Ou criminosos. Quero dizer ainda que esse lugar do mundo chamado
por um dos nomes mencionados acima tem seu reflexo, sua imagem, seu foco na
alma desses meninos. Retomarei essa ideia mais adiante.
Saint-Maurice, Saint-Hilaire,
Belle-Isle, Eysse, Aniane, Montesson, Mettray são alguns dos nomes que nada
representam para vocês. No entanto, na cabeça de cada menino que acabou de
cometer um delito, ou um crime, eles são, de forma definitiva, a projeção de
seus próprios destinos.
“Eu fui condenado ao 155”, dizem.
Cometem um erro
(voluntariamente), já que a conclusão do tribunal que os julga é esta: “Liberto
por ter agido sem discernimento e confiado, até atingir a maioridade, a um
centro de socialização...” Mas o jovem criminoso logo recusa a indulgente
compreensão e a boa vontade de uma sociedade contra a qual acaba de insurgir-se
cometendo seu primeiro delito. Tendo de 15 a 16 anos, ou mais jovem ainda, mas tendo
chegado a uma maioridade que não foi ainda atingida por muitos de 60 anos, ele rejeita
a bondade desses últimos. Exige que sua
punição seja exercida sem brandura. Exige, primeiro, que os termos que a
definem traduzam uma crueldade ainda maior. É com uma espécie de vergonha que o
menino confessa que a gente acabou de
absolvê-lo ou que a gente o condenou
a uma pena leve. Ele deseja o rigor. Ele
o exige. Dentro dele há o sonho de que a forma assumida pela punição será a de
um inferno terrível e a casa de correção o lugar do mundo de onde não há retorno.
De fato, dali não se sai e, quando se sai, já não se é mais o mesmo. É um fogueira que foi saltada. E os nomes que
citei não são nomes quaisquer: estão repletos de um significado e de uma carga de
terror exagerada ainda mais pelos meninos. De fato, esses nomes serão a prova
da violência deles, de sua força, de sua virilidade, pois é ela que pretendem
conquistar. Exigem que a provação seja terrível. Talvez com a finalidade de
esgotarem uma impaciente necessidade de heroísmo.
Mettray, na minha juventude, era
um desses nomes de grande prestígio. Liquidada por algum imbecil, Mettray
desapareceu. Creio que hoje em dia é uma colônia agrícola. Antigamente, era um
lugar severo. Após chegar àquela fortaleza de loureiros e de flores – pois
Mettray não era cercada de muralhas – o jovem fora-da-lei recebia, a partir
daquele instante, o nome de colono e era o objeto de mil cuidados destinados a comprovar
seu sucesso como criminoso. Era trancado numa cela toda pintada de preto, inclusive
o teto. Depois, vestido com uma roupa célebre na região por lembrar o pavor e a
ignomínia. Em seguida, e durante a sua estada, o colono passava por outras provas:
brigas às vezes mortais, a rede nos dormitórios, os silêncios durante o
trabalho e as refeições, as orações pronunciadas de forma ridícula, as punições
do guarda, os tamancos, os pés esfolados, a ronda ao sol marcando o passo, a lata
de água fria etc. Conhecíamos isso tudo em Mettray e como os ecos se correspondem,
a resposta em Belle-Isle era o suplício do poço e, nas outras colônias, a
fossa, a cova, a gamela vazia, o segurança, as lixeiras, a sala de disciplina.
Os colégios, as escolas, os liceus
têm uma disciplina que pode parecer às pessoas sensíveis também tão severa e
impiedosa. Contestamos isso ao afimar que o colégio não é feito pelos meninos: é feito para os meninos. Quanto às
penitenciárias, são a completa projeção, no plano físico, do desejo de
severidade implantado no coração dos jovens criminosos. Essas crueldades que vou
enumerar não as imputarei aos diretores, nem aos guardas de antigamente: eles
eram meras testemunhas atentas, também ferozes, mas conscientes de seu papel de
adversários. Tais crueldades deviam surgir e se desenvolver necessariamente do ímpeto
das crianças pelo mal.
(O mal: entendemos como essa
vontade, essa audácia de prosseguir um destino contrário a todas as regras.) O
menino criminoso é aquele que forçou uma porta que se abre para um lugar
proibido. Ele quer que essa porta se descortine para a mais bela paisagem do
mundo: exige que a prisão que mereceu seja cruel. Digna, enfim, do mal que ele se permitiu para
conquistá-lo.
Há alguns anos, homens bem-intencionados
tentam trazer algumas benesses a tudo isso. Esperam – e às vezes conseguem – ganhar
almas para a sociedade. Permitir, segundo dizem, que ingressemos no bom caminho.
Contudo, essas reformas são feitas, felizmente, apenas de forma superficial. Alteram
unicamente a forma.
O
que foi feito? Ao guarda deram outro nome: agente educativo. Também o vestiram
com um uniforme que deve lembrar um pouco menos as roupas dos guardas de presídios.
Obrigaram-no a usar menos violência física e o insulto e proibiram as surras.
Dentro desse Patronato abrandaram a disciplina. Deram àqueles a que chamam de reeducados a possibilidade de escolher
um ofício. Propiciaram mais liberdade no trabalho e nos jogos. Os meninos podem
conversar entre eles, contatar os vigilantes ou o diretor! O esporte é incentivado.
As equipes de futebol de Saint-Hilaire jogam contra as das cidadezinhas da
vizinhança e os jogadores se deslocam às vezes sozinhos de uma cidade para
outra. No Patronato, a imprensa é tolerada, embora selecionada. A alimentação é
melhorada. Há chocolate aos domingos de manhã. Enfim, uma outra medida que
deveria aprimorar a eficiência das reformas: a gíria foi banida. Em resumo, é
concedida aos jovens criminosos uma vida parecida com a vida mais banal. Isso é
o que é chamado recuperação.
A sociedade procura eliminar,
ou a tornar inofensivos, os elementos que tendem corrompê-la. Tudo indica que busca
diminuir a distância moral entre a culpa e a ideia de castigo. Tal objetivo de
castração é evidente. Ela não me comove nem um pouco. De fato, se os colonos de
Saint-Hilaire ou de Belle-Isle levam uma vida aparentemente parecida com a de
uma escola de aprendizes, não podem esquecer que é o mal que os reúne naquele
lugar particular. E ao ficar mantida em segredo, não percebida, esse sentimento
preenche cada uma das intenções de cada criança.
A essa gíria habitual que lhes
foi proibida foi substituída pelos colonos por outra, mais sutil ainda e que,
em razão de um mecanismo que não posso explicar diante desse microfone, se acrescenta
a gíria de Mettray. Em Saint-Hilaire, um dos meninos que um dia eu havia seduzido,
me disse:
“Quando eu lhe digo que o colega
fugiu, não repita ao diretor que eu disse que ele estava biché.”
Ele
largou a palavra sem querer. Era a mesma que empregávamos em Mettray para falar
do guri que se evade, que foge, aquele que os camponeses veem correr no campo
como um cervo. Eu estava a par de uma linguagem secreta, mais sábia do que a
que se pretendia abolir, e pergunto-me se ela não servia para expressar
sentimentos cuidadosamente escondidos. Os educadores têm a ingenuidade e a
mesma benevolência de um crente. Um dia, o diretor de um dos Patronatos mostrou-me
no seu escritório uma panóplia da qual parecia orgulhar-se: cerca de vinte
facas tomadas aos meninos.
“Senhor Genet, disse-me, a Administração
obriga-me a tomar deles essas facas. Obedeço, mas, olhe, o senhor pode me dizer
por que são perigosas? São feitas de folha-de-flandres! Com isso não se pode
matar ninguém!”
Será que ignorava que,
afastando de seu destino prático, o objeto se transforma, torna-se um símbolo?
Sua forma muda algumas vezes: diz-se que foi estilizado. É então que esse
objeto age surdamente e na alma das crianças cumpre os mais terríveis estragos.
Enfiado num colchão de palha à noite, ou escondido na dobra de um casaco, de
uma calça – não para maior comodidade, mas para que fique junto ao órgão do qual
é o símbolo profundo – torna-se o próprio ícone do assassinato que o menino não
cometerá, mas que fecundará seus sonhos e o encaminhará, assim espero, às
manifestações mais criminosas. Para que serve, portanto, que o tomem? O menino elegerá
como símbolo do assassinato outro objeto, de aparência mais benigna, e se dele for
novamente retirado, guardará dentro dele, preciosamente, de uma forma ainda
mais precisa, a imagem da arma.
O mesmo diretor mostrou-me a
equipe de escoteiros que havia formado a fim de recompensar os mais dóceis. Vi
uma dúzia de meninos sonsos e feios, que se deixaram cair na armadilha das boas
intenções. Cantaram ridículos cantos que nem de longe tinham a potência
evocadora das cantigas sentimentais ou obscenas entoadas à noite nos
dormitórios e nas celas. Olhando esses doze meninos, era claro que nenhum deles
seria escolhido, eleito, para participar de alguma expedição audaciosa, nem que
fosse apenas imaginária. Mas eu sabia que no interior da Penitenciária havia,
apesar dos educadores, grupos, ou melhor, bandos, cujos laços, a cola que os
aglutinava, eram a amizade, a audácia, a astúcia, a insolência, o gosto pela
preguiça, um ar no rosto às vezes sombrio e alegre, esse gosto pela aventura
contra todas as regras do Bem.
Peço desculpas por empregar
uma linguagem aparentemente
tão pouco precisa. Levem em consideração que estou tentando definir uma atitude
moral e justificá-la. Reconheço querer, sobretudo, interpretá-la contra vocês.
Mas não são vocês os primeiros a falar da “Potência das Trevas”, do “obscuro
poder do Mal”? Vocês não temem a metáfora quando ela pode convencer. Ora, eu a
utilizo para falar de maneira mais eficaz dessa parte noturna do homem que não
se pode explorar, na qual ninguém pode engajar-se se não estiver armado,
untado, perfumado, se não estiver cercado de todos os ornamentos da linguagem.
Mas, sobretudo, quando se busca conseguir o Bem (observem que distingo
rapidamente o Bem do Mal, mas, de fato, são categorias que somente vocês podem
distinguir fora do tempo), se se procura obter o Bem, sabe-se aonde se vai e o que
é o Bem, e que a sanção será benéfica. Mas quando se trata do Mal nunca se sabe
do que se fala. No entanto, sei que ele é o único a poder suscitar à minha escrita
o entusiasmo verbal, sinal da adesão de meu coração.
De
fato, não conheço outro critério da beleza de um ato, de um objeto, de um ser,
senão o canto que o Mal suscita dentro de mim, e que eu traduzo através das
palavras a fim de comunicar a vocês: a isso chamo de lirismo. Se meu canto é
belo, se ele perturba, será que ousariam dizer que é vil aquilo que o
inspira? Poderiam, por acaso, pretender
que existem palavras há muito tempo destinadas a exprimir as mais altivas
atitudes, e que são aquelas a que eu recorro para que a mais baixa pareça a
mais altiva? Posso responder que minha emoção reclamava justamente essas
palavras e que elas vêm servi-la de forma muito natural.
Chamem,
pois, de inconsciência, se a alma de vocês é pequena, o movimento que leva o
menino de quinze anos ao delito ou ao crime; quanto a mim, chamo a isso de
outro nome. Pois é preciso uma grande
garra, uma tremenda coragem para enfrentar uma sociedade tão forte,
instituições tão severas, leis protegidas por uma polícia cuja força reside
tanto no temor fabuloso, mitológico, informe, que ela instala na alma dos
meninos, quanto na sua organização.
O
que conduz esses meninos ao crime é o sentimento romântico, isto é, a projeção
de si mesmo na mais magnífica, a mais audaciosa, enfim, a mais perigosa das
vidas. Traduzo por eles, pois eles têm o direito de utilizar uma linguagem que
os ajude a se aventurar... Onde, vocês acreditam? Não sei. Eles também não sabem,
mesmo se no mundo dos sonhos lhes parece que está claro, será sempre um lugar fora
do mundo de vocês. E eu me pergunto se eles são perseguidos por despeito ou porque
a vocês eles menosprezam e rejeitam.
A
vocês, não aconselho nada. Desde que comecei a falar não é a educadores a quem
me dirijo, mas a culpados. Para a sociedade e a favor dela não pretendo
inventar qualquer dispositivo novo a fim de que ela se proteja. Confio nela: pois
saberá sozinha resguardar-se do precioso perigo que são os meninos criminosos.
É a eles que falo. A eles peço que não se constranjam pelo que fizeram e que conservem
dentro deles, intacta, a revolta que os fez tão belos. Não há remédios, assim
espero, contra o heroísmo. Mas, atenção, se houver entre os bravos cidadãos que
me ouvem alguns que não desligaram o rádio ao me ouvir, saibam que é preciso
que assumam até o fim a vergonha, a infâmia de serem almas bem-intencionados e
jurem que serão descarados até o fim e serão cruéis, a fim de aguçar uma
crueldade cujo resplendor brotará desses meninos.
Aquele
que pela brandura ou privilégios tenta atenuar ou abolir a revolta destrói para
si todas as chances de salvação. E ninguém pode perdoar o crime se não for
primeiro culpado e condenado.
Essas
espécies de aforismos parecem suscitadas por esse lirismo sobre o qual falei.
Concordo. Para enunciá-las apoio-me sobre uma única autoridade: a dor que tive
de suportar para lhes propor seu contrário. Mas sabem sobre o que se baseiam as
regras morais de vocês? Então, sofram, pois aqui está um poeta, que é também um
inimigo e lhes fala como poeta e como inimigo.
O
único meio que terão os grandes homens, as pessoas honestas, de salvaguardar
alguma beleza moral, é a de recusar toda piedade aos meninos que eles não toleram.
Pois não pensem, Senhores, Senhoras, Senhoritas, que é suficiente debruçar-se
com solicitude, indulgência e compreensão sobre o menino criminoso para ter o
direito à afeição e à gratidão dele: é preciso ser essa criança, é preciso
também que vocês sejam o crime e o santifiquem através de uma vida magnífica,
isto é, através da audácia de romper com todo o poder do mundo. Já que estamos
divididos – a partir do momento em que queremos e ousamos essa ruptura – entre
não culpados (eu não digo inocentes), entre não culpados como vocês e os
culpados que somos, saibam que é toda uma vida que irá conduzir para esse lado
do campo em que vocês pensam poder, sem risco e com o conforto moral,
estender-nos uma mão amiga. Quanto a mim, escolhi: ficarei do lado do crime.
Ajudarei os meninos não a voltar às suas casas, às usinas, às escolas, às leis
e sacramentos de vocês, mas a violá-los. Ah! Temo não ter agora mais essa mesma
virtude, pelo fato de não ter sido apenas um lapso dos organizadores o convite que
me fizeram para que lhes fizesse esta palestra, mas porque me foi concedido
falar a uma Radio tão facilmente.
Os
jornais mostram ainda hoje fotografias de cadáveres transbordando de depósitos
ou espalhados nas planícies, cravados em arames farpados, em fornos
crematórios; mostram unhas arrancadas, peles tatuadas e curtidas para os
abajures: são os crimes hitleristas. Mas ninguém percebeu que, desde sempre,
nas prisões de meninos, nas prisões de França, torturadores martirizam crianças
e homens. Do ponto de vista da justiça mais que humana, ou apenas humana, não é
importante saber se uns são inocentes e os outros culpados. Aos olhos dos
alemães, os franceses eram culpados. Fomos tão maltratados na prisão e de maneira
tão covarde que tenho inveja das torturas de vocês. Pois são iguais ou melhor do
que as que aconteceram conosco. Sob a ação do calor a planta se
desenvolveu. Já que ela foi semeada
pelos burgueses que fizeram as prisões de pedra, com seus guardas de carne e de
espírito, rejubilo-me ao ver, enfim, o semeador devorado. Os bravos cidadãos
aplaudiam aqueles que são hoje um nome dourado gravado sobre o mármore,
enquanto, com indiferença, viam-nos passar com algemas nos punhos e um tira batendo
em nossas costelas. Uma única bofetada de seus gendarmes foi vivificada pelo
sangue ardente dos heróis do Norte e desenvolveu-se até se tornar uma planta
maravilhosa de beleza, de tato e de distinção, uma rosa cujas pétalas tronchas,
recurvadas, mostrando o encarnado e o rosa sob um sol do inferno foram
batizadas com nomes terríveis: Maïdenek, Belsen, Auschwitz, Mauthausen, Dora.
Tiro meu chapéu.
Continuaremos
a ser o remorso de vocês. Sem nenhuma outra razão a não ser a de embelezar
nossa aventura, porque sabemos que a beleza dessa aventura depende da distância
que nos separa, pois onde aportamos os cais não são diferentes, mas nas praias
bem ancorados percebemos o quanto vocês são pequenos, magrelos, ranzinzas e o
quanto são impotentes. Aliás, rejubilem-se. Se os maldosos, os cruéis,
representam a força contra a qual vocês lutam, queremos ser essa força do mal. Seremos
a matéria que resiste e sem a qual não haveria artistas.
Conversas
românticas!, vocês podem dizer assim.
Ora,
sei que a moral em nome da qual perseguem esses meninos não é assumida por
vocês. Não os reprovo por isso. O mérito de vocês consiste em professar
princípios que tendem a comandar suas vidas. Mas vocês não têm a força
suficiente nem para se dedicar totalmente à virtude, nem totalmente ao Mal. Pregam
uma coisa e desaprovam a outra da qual dependem. Reconheço esse senso prático. Ah! Não posso elogiá-lo. Acusem-me, pois, de
lirismo! Mas se acontecer de um de seus juízes, de um escrivão de tribunal ou de
um diretor de prisão conseguir fazer eclodir e erguer-se do meu peito um canto,
é a vocês, senhores, que prevenirei em primeiro lugar.
Sua
literatura, suas belas artes, seus divertimentos noturnos, celebram o
crime. O talento de seus poetas
glorificou o criminoso que na vida real vocês odeiam. Padeçam, por sua vez, o
nosso desprezo pelos seus poetas e
artistas.
Podemos
dizer hoje em dia que é preciso muita presunção ao comediante que ousa fingir
no palco um assassinato, quando há, a cada dia, crianças e homens cujo crime,
mesmo sem findar em morte, faz pesar sobre eles o desprezo ou o delicioso
perdão de vocês. Cada um desses criminosos deve administrar seu próprio ato. É
preciso que dele obtenha os recursos de sua vida moral, que a organize em torno
dele mesmo, que dela obtenha aquilo que a de vocês lhe recusa. Por si – e por
si só e por um tempo muito breve, pois vocês têm o poder de cortar-lhe a cabeça
– ele se torna um herói tão belo quanto aqueles dos livros com os quais vocês
se emocionam. Se ele vive, para
continuar a viver consigo mesmo lhe é preciso mais talento do que ao poeta mais
talentoso.
No
entanto, os heróis que preenchem os livros, as tragédias, os poemas, os quadros
de vocês, continuam a ser o ornamento da vida de vocês, enquanto aqueles que
serviram de modelos para tudo isso são desprezados. Vocês estão certos: eles
recusam a mão estendida.
Aqueles
que me escutam, se viram o filme Sciuscià,
devem ter ficado emocionados pelo jogo delicado de sentimento dos meninos
ligados uns aos outros pelo amor mais sutil. Admiraram a aventura que eles
ousaram viver, mas ninguém sonhará que existem esses heróis charmosos na
própria vida. Que eles roubam cheques verdadeiros dos verdadeiros pais. Sem
dúvida, o que se chama de talento dos comediantes nos possibilitou belas
imagens; no entanto, aqueles que lhes serviram de modelos são os que sofreram
de verdade, sangraram, choraram (mais raramente) e a glória do mundo lhes foi
recusada. Vocês suportam o heroísmo
quando é domesticado (observo que os que fazem charme, seus artistas,
domesticam o heroísmo para vocês, mantendo-os à distância). Vocês ignoram o
heroísmo na sua verdadeira natureza carnal, o mesmo que ele sofre no cotidiano.
A verdadeira grandeza roça vocês, mas é ignorada, porque preferem o fingimento.
Ora,
se as crianças têm a audácia de dizer não, castiguem-nas. Sejam duros a fim de
que elas não poupem vocês. Mas há muito tempo vocês trapaceiam. Nos seus tribunais,
nos seus juizados, já nem é mais observada a cerimônia do ritual – não porque vocês
não a tenham substituído por uma crueldade mais íntima, uma crueldade de terno
e gravata, se ouso dizer assim – mas, por grave desleixo, chegam ao pretório
com toga remendada, cujos forros não são nem mais de seda, mas de raiom ou
percalina. Assim, vocês devem aplicar todas as regras do código e, antes de
qualquer coisa, as mais formalistas. O menino criminoso não acredita mais na
dignidade de vocês, pois percebeu que era feita de uma presilha desbotada, de
um galão descosturado, de um forro desfiado. O lustre, a poeira e a pobreza de
suas sessões desolam-no. Ele está a ponto de oferecer-lhes um pouco de
majestade de que sabe ser capaz de obter numa sessão mais solene à qual
comparece em segredo enquanto vocês continuam o simulacro sob seus olhos
infantis. Por pouco a familiaridade levará vocês ao ponto acariciar-lhe o
rosto, de tocar-lhe o queixo, se não tiverem receio de que ele os acuse, não de
indulgência paternal, mas de abomináveis sentimentos.
Parece
brincadeira? Meu humor pode parece grosseiro. Estão certos de que vão salvar
essas crianças. Felizmente, à beleza dos marginais mais idosos que eles admiram,
aos orgulhosos assassinos, vocês não poderão nunca oferecer-lhes em troca a não
ser guardas ridículos, apertados em uniformes mal costurados e mal ajustados.
Nenhum de seus funcionários poderia com sucesso levar essas crianças às
aventuras nas quais elas foram iniciadas. Nada substituirá a sedução dos
fora-da-lei, pois o ato criminoso tem mais importância do que qualquer outro,
já que é por ele que nos opomos a uma força tão grande, tanto moral quanto física.
Vocês
acreditam, também, na beleza de Vacher, na de Weidmann, na de Ange Soleil.
Protesto contra essa afirmação: “...havia neles maravilhosas possibilidades das
quais poderiam ter retirado proveito...”. Eis uma linguagem que somente vocês
podem utilizar, a da Sociedade. Mas ficariam chateados se os interrogasse com
rigor. Eles retiraram deles mesmos as mais maravilhosas possibilidades.
Quanto
a vocês, se não conseguirem conquistar esses meninos através de docilidades, resta-lhes
curá-los com seus psiquiatras. A respeito deles, bastaria colocar-lhes algumas
perguntas simples e mil vezes postas. Se a função deles consiste em modificar o
comportamento moral das crianças, seria para conduzi-los a que moral? Trata-se
daquela moral ensinada nos manuais escolares? Mas o homem de ciência não a
levaria a sério. Trata-se de uma moral particular, elaborada por cada médico? Neste
caso, de onde forjou sua autoridade?
Qual
a razão dessas perguntas se elas vão ser escamoteadas? Sei que se trata da
moral comum e a psiquiatria se nutre dela, dando às crianças o belo nome de
desadaptados. O que posso responder? Às velhacarias de vocês responderei sempre
com a minha astúcia.
Hoje,
que não sei por que razão foi permitido a um poeta, que foi um desses meninos, falar
nesse microfone, quero dizer mais uma vez minha ternura por esses homenzinhos
sem piedade. Mas não tenho mais ilusões. Falo no vazio e na treva. Nem que seja
apenas para mim mesmo quero continuar a insultar os insultuosos.
(in Genet,
Jean: Œeuvres complètes V. Paris: Gallimard. 1979). A primeira edição é de 1949.