sexta-feira, 31 de dezembro de 2010


Eu  também sou América

Langston Hughes

Também canto a América
Sou seu "brother".
Quando chega alguém,
Eles me mandam comer na cozinha
Mas eu rio,
Como bem,
E fico forte.

Amanhã
Sentarei à mesa
Quando chegar alguém.
Então ninguém se atreverá
A me dizer
"Coma na cozinha".

Aí eles vão ver como sou bonito
E ficarão envergonhados.

Eu também sou a América.

(Tradução de Sylvio Back, Caderno Mais!
Folha de
São Paulo, 15 de fevereiro de 1998.)


(I am the darker brother./They send me to eat in the kitchen/When company comes,/But
I laugh,/And eat well,/And grow strong.//Tomorrow,/I'll be at the table/When
company comes./Nobody'll dare/Say to me,/"Eat in the kitchen,"/Then.//Besides,/They'll
see how beautiful I am/And be ashamed--//I, too, am America.)

Apenas 37 anos nos separam dessa foto. Feliz 2011.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010


Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud!

René Char

Teus dezoito anos refratários à amizade, à malevolência, à tolice dos poetas de Paris, bem como ao zumbido de abelha estéril de tua família ardenesa um pouco maluca, fizeste bem em espalhá-los aos ventos ao largo, de lançá-los sob a lâmina de sua precoce guilhotina. Tiveste razão em abandonar o bulevar dos preguiçosos, os botecos dos poetastros pelo inferno dos idiotas, pelo comércio dos astuciosos e o bom-dia dos simples.
Esse elã absurdo do corpo e da alma, essa bala de canhão que atinge o alvo fazendo-o explodir, sim, isso é de fato a vida de um homem! Não se pode, ao sair da infância, estrangular indefinidamente seu próximo. Se os vulcões mudam pouco de lugar, suas lavas percorrem o grande vazio do mundo e traz-lhe virtudes que cantam nas suas feridas.
Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Somos alguns dos que acreditam sem precisar de provas na felicidade possível ao teu lado.
_______________________________________________________
(Um belo e oportuno  poema de René Char para este nosso final de ano.)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O Funâmbulo

Jean Genet

Uma lantejoula de ouro é um disco minúsculo feito de metal dourado, trespassado por um orifício. Tão fina e tão leve que pode flutuar sobre a água. Às vezes, uma ou duas ficam agarradas aos cachos de cabelos de um acrobata.
Este amor – quase desesperado, mas repleto de ternura – que deves demonstrar ao teu arame, terá a mesma força desse fio de ferro que suportará teu peso. Conheço os objetos: sua crueldade, sua perversidade e também sua gratidão. O arame estava morto – mudo, cego, como quiseres – ei-lo: agora vai viver e falar.
Tu o amarás de um amor quase carnal. Cada manhã, antes de começar teus ensaios, quando ele estiver tenso e vibrante, vai dar-lhe um beijo. Pede-lhe que te suporte e te conceda a elegância e um jarrete ágil. Ao fim de cada sessão, reverencia-lhe, agradece-lhe. E quando, à noite, ele ainda estiver enrolado, guardado em sua caixa, fique com ele e o acaricie. E, então, coloca docemente tua face contra a dele.
Certos domadores usam de violência. Podes tentar domar teu arame. Mas não te fies nisso. O arame, como a pantera e, segundo se diz, como o povo, gosta de sangue. Assim, é melhor tentar domesticá-lo.
Um ferreiro – só um ferreiro de bigodes grisalhos e largas espáduas pode se permitir tais delicadezas – saudava assim, a cada manhã, sua amada, sua bigorna:
- Oh! Minha bela!
De noite, o dia já findo, sua mão calejada a acariciava. A bigorna não parecia insensível àquele gesto e o ferreiro se surpreendia comovido.
Incumbe ao arame executar a mais bela expressão possível; não a tua, mas a dele. Teus pulos, teus saltos, tuas danças – na gíria dos acrobatas, teus volteios, saltos mortais, estrelinhas etc – serão executados não para que brilhes, mas para que o arame, que jazia morto e sem voz, possa, enfim, cantar. E, assim, ele te será grato: se fores perfeito em tuas atitudes, não n busca de tua glória, mas a dele.
Que o público, maravilhado, o aplauda:
_Que arame maravilhoso! Como ele suporta tão bem seu bailarino e como ele o ama!
Ao chegar a tua vez o arame será para ti o mais maravilhoso bailarino.
E, então, será o chão que te fará tropeçar!

Obs.: Pequena homenagem a Jean Genet no seu centenário. A ilustração é de Giacometti.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

De orquídeas

Orquídea (Dendrobium anosmum) medalha de bronze na XXXI mostra de orquídeas da Associação dos Orquidófilos de Pernambuco, realizada entre os dias 15 e 17 de outubro. A orquídea foi cultivada numa coité (Crescentia cujete), idéia de Sônia Lessa Norões.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Um grande espetáculo

Século XXI. O mundo estarrecido com 33 homens soterrados a mais de 600 metros de profundidade, em discutíveis condições de trabalho, numa mina falida, em pleno deserto de Atacama. O Chile não é apenas país de terremotos. É também o de massacres de mineiros. Permanece vivo na memória nacional o famoso episódio da matança de Santa María de Iquique, quando cerca de 3.000 operários foram executados pelo exército chileno. Foi em 1907. Mas, desde então, o que terá mudado? O presidente recém-eleito, magnata ligado às multinacionais, entendeu a situação e agiu com presteza: tudo transformou num grande espetáculo, no qual caberia a ele o principal papel. Os 33 operários certamente passarão de heróis a cobaias. Pois é preciso saber o quanto o homem suporta, para que possa ser arrancado da terra o metal que serve para fabricar os instrumentos de morte e para alicerçar um modelo de desenvolvimento desenfreado, do qual não podemos  conceber o fim.
Na noite do resgate destes 33 mineiros chilenos, restava ler Pablo Neruda, no seu Canto Geral, traduzido  por Paulo Mendes Campos.


Era já alta noite, noite profunda,
como o interior vazio de um sino.
Ante meus olhos vi os muros implacáveis,
o cobre derruído na pirâmide.
Era verde o sangue destas terras.(...)

As vértebras do cobre estavam úmidas,
descobertas a golpes de suor
na infinita luz do ar andino.
Para escavar os ossos minerais
da estátua enterrada pelos séculos,
o homem construiu as galerias
de um teatro vazio.
Porém a essência dura,
a pedra em sua estatura, a vitória
do cobre fugiu deixando uma cratera
de ordenado vulcão, como se aquela
estátua, estrela verde,
fora arrancada ao peito de um deus ferruginoso
deixando um oco pálido socavado nas alturas.

sábado, 2 de outubro de 2010

No caos, a compaixão
(sobre Retratos imorais, de Ronaldo Correia de Brito)

Um homem de meia-idade, de costas, metade do corpo emergindo de uma água parada, mergulhado em si mesmo, indiferente a uma escada fincada à sua direita e a algumas rochas à esquerda. É a capa de Retratos imorais, o mais recente livro de Ronaldo Correia de Brito. O homem esquece a salvação – escada e pedras – e olha para baixo: talvez o próprio reflexo no espelho da água. Não uma água ameaçadora; no entanto, nela há algo de putrefato, alguma coisa que nos faz pensar no padecimento ou na resignação. O fio de prumo dos contos de Retratos repousa sobre essa superfície plana de um líquido sob a qual perpassa a ‘imoralidade’ dos retratos de seus personagens, aparentemente – mas só aparentemente – tão díspares quanto o médico do conto intitulado Catana ou o paraplégico de Homem folheia álbum de retratos imorais.
Capa e título do livro anunciam um con-texto julgado desconfortável por algumas resenhas, pois é susceptível de tocar quem não se acostumou aos golpes do mal e do absurdo distribuídos, desde muito, por autores como Dostoievski, Camus ou Kafka. Não é por acaso que o autor de O processo é sempre lembrado para apadrinhar livro que se desvie da tutela de certa literatura déjà vu e de cujo núcleo infernal fazem parte o ‘imoral’ ou o ‘absurdo’ Retratos imorais certamente intimidará alguns leitores, porque se situa nessa órbita de contaminação, de infecção.
Depois de olhar a capa e de ler o livro, vem a pergunta: de onde nasce a aflição desses contos, esse ‘desconforto’ que toca a susceptibilidade de alguns resenhistas? Choca a constatação de que o absurdo se parece demais com nosso cotidiano, as situações vividas pelos personagens brotam diretamente de nossas ruas, apartamentos ou hospitais, talvez de nossas próprias casas. Além disso, essas circunstâncias são transfiguradas na narrativa por uma espécie de ótica que inverte as imagens e depois as tinge de cores bizarras: fotografias feitas para nos alcançar com um soco de direita, não para serem pregadas nas paredes, à guisa de lembrança.
No último conselho de seu decálogo sobre a construção do conto, um de seus mestres, o uruguaio Horácio Quiroga, escreveu assim: “Conta como se teu relato não tivesse mais interesse do que para o pequeno ambiente de teus personagens, dos quais tu poderias ter sido um. De nenhum outro modo se obtém a vida do conto”. De fato, somente num ‘pequeno ambiente’ é possível situar o leitor, transformá-lo num cúmplice. A vida nos contos de Retratos imorais transcorre nesses espaços exíguos, onde personagens se debatem em situações quase sempre violentas, até esbarrarem numa forma de impotência ou de resignação. Quando o narrador, no conto Pai abençoa filho, lembra que “todas as experiências do homem são de algum modo análogas”, essa única frase justifica as referências recorrentes do autor ao Eclesiastes, a Shakespeare ou ao Livro das mil e uma noites. Se não há novidade no que diz respeito aos grandes temas que perpassam as histórias humanas, se estamos fadados a nos debater entre a incapacidade de revolta e o infortúnio, resta ao filho mais novo repetir ao pai o pedido da bênção ancestral, que é a repetição do ciclo, a espiral que finda em si mesma. Essa impotência, percebida nas entrelinhas de cada conto, é algo intolerável ao individualismo burguês, que se imagina infenso a qualquer contágio e só consegue se abismar com o inevitável quando lhe chega a ponte de safena ou alguma forma de câncer. Pois, para ele, é imperdoável a história sem herói, o conto que se inicia com um personagem derrotado.
Avanço o olhar na perspectiva dos personagens, para não tratar do autor; ele pode restar à sombra quando o livro está pronto e assume destino próprio. É nesse instante que ele, o autor, deve se sentir feliz: seus personagens passam a caminhar com tanta autonomia que as interpretações biográficas deixam de ter papel relevante. Milan Kundera escreveu que existe apenas um método para compreender os romances de Kafka: lê-los, não tentando buscar nos personagens o retrato do autor, mas se esforçando para acompanhar esses personagens com o máximo de atenção, através de seus comportamentos, opiniões, pensamentos. Creio que esse é um bom método a seguir no caso de Retratos imorais. O sertão desfigurado do romance Galileia, de um ‘regionalismo’ às avessas, é mero cenário para permitir uma sorte de fuga de Bach entre vozes destoantes. Em Retratos, a arquitetura urbana da casa do psicanalista Rodolfo, atravessada por uma rede, pode ser percebida como oficina onde se fermenta a alienação de uma intelectualidade provinciana, da qual nem sequer escapa o serviçal Francisco.
Encontramos em alguns dos textos de Retratos imorais uma linguagem de toque híbrido – pequenos retalhos de teatro ou de cinema – em contos como Mães em fuligem de candeeiro ou Homem-sapo. Esse hibridismo, que nada tem a ver com questões de gênero, auxilia a organização de nosso olhar, o olhar do leitor, em torno de episódios aparentemente simples, mas que transcorrem numa circunscrição do espaço que confere ao conto sua conformação esférica, para utilizar a ideia de Cortázar. Nessa esfera, penetramos; nela, quedamos presos, como quase todos os personagens, sem claraboias de onde enxergar a salvação.
E aí se encontra, a nosso ver, o nó górdio da literatura do autor de Retratos imorais: a busca da salvação de quem está inexoravelmente fadado a sucumbir. No final de cada conto, o leitor depara com uma espécie de perplexidade, de interrogação, que o ameaça como lâmina ao sol. Mas se nada tem resposta é porque – maktub – tudo está escrito. Como no texto Mãe numa ilha deserta, quando a luz do farol se apaga de repente, falta petróleo, a escuridão desaba sobre a mãe e o filho e não resta mais do que, ao longe, o registro de um acordeom. O cristianismo tolstoiano dessa literatura abre com brutalidade a ferida para nos acordar a compaixão.
Tem alguma coisa a ver com a natureza dos contos de Retratos imorais a frase com que Albert Camus abre seu ensaio Filosofia e romance: “Todas essas vidas mantidas no ar avaro do absurdo não saberiam como se sustentar sem algum pensamento profundo e constante que as anima com sua força”. E, em seguida, o autor de O mito de Sísifo conclui que ao sermos obrigados a conviver com esse absurdo, a alegria absurda por excelência é a criação. Talvez a alegria da criação de Ronaldo Correia de Brito consista em ressuscitar personagens de seu dia a dia, para os quais, se não há a salvação, pelo menos poderá haver alguma espécie de misericórdia.

(in Correio Braziliense, 02.10.2010)

sábado, 28 de agosto de 2010

Aula de física

Ronaldo Costa Fernandes

O pêndulo é suspenso pela dúvida
que transforma em dois o que é um.
O pêndulo e seus braços
que marcham sem sair do lugar.
Seguro à dúvida,
não sou dois nem um,
marcho parado,
sem conta que me dê jeito,
sem física que me conforme.


Obs.: Ronaldo Costa Fernandes, recolhido no seu canto, em algum lugar de Brasília, é um dos grandes poetas brasileiros. Pouco importa se ele escreve: Sou um sujeito antes só\que mal acompanhado ando de mim. Acompanhemos sua poesia... (A ilustração é de Max Ernst).

quinta-feira, 19 de agosto de 2010


De biblioteca...

- Vim procurar uma palavra perdida num texto de Joaquim Cardozo, no Livro do Diário...
O poeta me recebe num exíguo escritório, entre arquivos de aço, recortes, livros ensebados.
Na parede, um poema de sua autoria: “Seção de Obras Raras”. Deveria ser fixado nas paredes de nossas bibliotecas. Fora, o parque Treze de Maio: galhos e raízes rasgam céu e terra, num emaranhado de vísceras: poemas de Alberto Cunha Melo.
Queixa-se dos vencimentos, fala de biblioteca, discursa sobre Horácio, um de seus preferidos.
E eu, que procurava apenas uma palavra fugida de um ensaio do poeta do Signo Estrelado sobre Manuel Bandeira.
Não a encontrei. O tipógrafo havia podado uma das frases. Não era o x da equação de um poema de Cardozo, mas qualquer coisa que faltasse a algum de seus textos era tijolo faltante de uma casa.
- E agora, Poeta?
- Pode inventar.
Toda palavra é uma mentira de Deus.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Uma anotação sobre tradução

Falhas de tradução podem levar facilmente a equívocos de interpretação. Exemplo: uma tradução do ensaio O narrador, de Walter Benjamin (Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ed. Brasiliense, tradução de Sergio Paulo Rouanet).
Certas passagens dessa tradução brasileira são quase incompreensíveis. No início do capítulo XVII do ensaio está escrito:“Poucos pensadores tiveram uma afinidade tão profunda pelo espírito do conto de fadas como Leskov”. (p. 216) Não conheço a língua alemã, mas o texto francês, traduzido e revisado pelo próprio Benjamin (Écrits français. Gallimard) diz assim: “Poucos narradores parecem tão profundamente impregnados do espírito dos contos quanto Leskov” (*). Trata-se apenas de uma frase, ou de uma palavra, mas ela muda completamente o sentido do ensaio. Benjamin não poderia se referir a “conto de fadas”, pois não são contos de fadas aqueles veiculados no passado pelos artesãos, comerciantes ou marinheiros, arquétipos de que trata O narrador. O próprio texto da tradução se contradiz, quando se refere a ‘conto de fadas’ numa página e, logo em seguida, faz referência a personagens como “o tolo”, “o inteligente”, “o caçula” etc.
Em outra passagem ( p. 201) do mesmo ensaio, lê-se: “Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem vive”. Na tradução (insistimos, feita pelo próprio Benjamin), a palavra correta não é perplexidade, mas abulia, que significa falta de vontade, de ânimo para se tomar decisão, o que é bem diferente de perplexidade.
Para um autor como Walter Benjamin, (este seu ensaio é intensamente analisado nas universidades), filósofo para quem cada palavra pode encerrar um conceito, cada pequena observação um pensamento original, a tradução imperfeita é susceptível de comprometer a formulação de uma teoria ou de tornar incompreensível aquilo que ele conseguiu expressar com o máximo de clareza.
(*) Peu de narrateurs paraissent aussi profondément imprégnés de l'esprit des contes que Leskov.(p. 291)

terça-feira, 27 de julho de 2010


Os anomenos

Manoel Ricardo de Lima, poeta e crítico, oferece-nos um pequeno livro, os anomenos, editado pela editora de casa, com copyleft do autor e projeto gráfico de Fernanda do Canto. Uma escrita que faz pensar, por buscar na leitura crítica da vida cotidiana, repetitiva e vazia, os materiais para a construção de uma poética do banal.
Um pequeno exemplo:
Os humbertos

Manoel Ricardo de Lima

Estes seres do lado de lá do mundo, os
humbertos, têm certeza que carregam em
cada um deles, um a um, o nome de um
rei, e poderiam facilmente rechear a pança
com títulos nobiliárquicos como Humberto
primeiro, Humberto quinto, Humberto nono
etc. Mas não, ferozes e ao mesmo tempo
mansos em seu comportamento ambíguo,
entre a nobreza e a rua, os humbertos não
são nada impassíveis, ao contrário, com uma
passionalidade extremada, ousam a cada vez
que descobrem uma nova possibilidade de
vida escorregar as suas patas e os seus olhos
graúdos até seja lá o que se apresente como
desejo. Se dicotômicos, contraditórios; e se
contraditórios, não esquecem de cuidar de si
mesmos nem dos que gostam como seu mais
ardiloso triunfo.
*
Obs.: A ilustração é do artista Hélio Jesuino.


segunda-feira, 26 de julho de 2010


Coincidências poéticas...
No capítulo Quadrinhas, de Cantadores (a primeira edição é de 1921), o escritor cearense Leonardo Mota cita como da autoria de Correia de Oliveira os versos:

Ó ondas do mar salgado,
De onde vos vem tanto sal?
Vem das lágrimas choradas
Nas praias de Portugal.

É de 1922 os versos do poema Mar Portuguez, de Fernando Pessoa (Mensagem):

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal.(...)

quinta-feira, 15 de julho de 2010


Memórias, memórias...

No ensaio intitulado L’amour en retrait, Valeria Piazza evoca o diário de Hanna Arendt e a correspondência da filósofa com Heidegger, para tratar sobre a maneira como um autor se manifesta em duas modalidades de escrita: a correspondência e o diário. Valendo-se de textos de Walter BenjaminValeria Piazza registra que o diário “não é alguma coisa que chega ao eu que vive”, mas é com o diário que “a experiência sai do mundo dos fatos e acede à língua, inaugurando uma nova dimensão” onde o eu deixa de ser prisioneiro no mundo dos acontecimentos, tornando-se ele próprio ‘rayon du temps’, pura temporalidade.
Escrito nos limites dos gêneros, quando prosa poética mescla-se a fragmentos de diário, certos livros enfeixam-se na frase de Benjamin, citada por Valeria Piazza: “livro insondável de uma vida jamais vivida”. É quando estamos diante de uma escrita na qual os 'diários' ou as 'memórias' são também  ficção e experiências que 'acedem à lingua’. Quanto são assim?...

(AGAMBEN e PIZZA V.: L’ombre de l’amour – le concept d’amour chez Heidegger. Paris : Payot Rivages. 2003)
Ilustração de Braque.

segunda-feira, 12 de julho de 2010


Geraldo Maia


Leiam a entrevista do músico Geraldo Maia, no site MuzaMusica,  cuja introdução transcrevemos:

"Geraldo Maia é cantor e compositor pernambucano , dono de voz cristalina com doce sotaque nordestino, nó de destinos, e com ritmos que fluem por sua cabeça e pela cabeça de um Brasil geográfico.
Gravou seu primeiro trabalho em 1987 e em seguida partiu para Portugal onde viveu por pouco mais de dez anos. Voltou em 99 trazendo um album , “Agua Verde”, lançado aqui no mesmo ano.
Sua musica se reveste de elegância harmônica trazendo uma caudulosa sensação de ritmos brasileiros como o coco, o samba e o baião e que vertem na tal mpb.
Geraldo faz uma musica voltada a elos que ele remonta com a musica brasileira, esta sua busca se revela por exemplo em álbuns como o Samba de São João (2007) e “Samba do Mar Quebrado” (2004), que trazem sambas interessantes como um de Luiz Gonzaga (sim, o rei do Baião) e outros de compositores de sua região, terra de um tal José, Jackson do Pandeiro.
Seu trabalho tem uma beleza tamanha, que me leva a me perguntar por que sua musica distribuida em expressiva discografia não se aninhou por estes Brasis?
Segue abaixo entrevista que fiz com o compositor durante o começo deste ano.
Conheça a personalidade deste interessante músico , ouça alguma de suas belas composições."


A homepage de Geraldo é http://www.geraldomaia.com.br/
http://muzamusica.blogspot.com/2010/06/geraldo-maia.html

domingo, 11 de julho de 2010


Um poema de Julia Jarré

IX

Para dialogar com teu inventário

Julia Jarré
Esta forma de estar em ti
o dia não ensina:
a música do sussurrar das flores
o vento – pele do mundo
nem o mar sereno em nós

A dança luminosa no escuro –
insetos que brilham – estrelas
nem a areia nos pés dos cavalos.

Nada me dizem as cantigas
de crianças nas portas das casas
não posso saber nem assim
pelo cheiro da terra molhada.

O nosso amor é secreto
anis no mundo terreno
toque de mãos – um mistério
completamente azul

***

(Do livro Noite de véspera (Edições Moinhos de Vento. Recife. 2010)
Ilustração: Braque

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Por aqui passou Miguel Torga...

Ao lado da antiga Sé de Lisboa, ergue-se o prédio onde funcionava a prisão do Aljube. Ali eram presos, torturados e interrogados os opositores de Salazar. Tudo ocorria sob a benção da Igreja Católica, que tinha no cardeal Cerejeira o mais fiel aliado do ditador português. Pelo Aljube passaram pessoas ilustres, como Miguel TorgaSônia fotografou o edifício. A prisão foi desmontada pelo Movimento de Abril.


Na placa:

Aqui, no silêncio das ‘gavetas’
da pátria amordaçada
dos peitos desfeitos pelas torturas da pide
subiu o clamor da liberdade
floriu abril”.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

José e João

Traduzi recentemente o conto El barranco, de José María Arguedas, que integra seu primeiro livro, Agua, de 1935. Será publicado na revista Para Mamíferos, com apresentação do poeta peruano e amigo do escritor, Hildebrando Perez Grande. Como neste conto, toda a extraordinária obra de Arguedas tem a marca de sua convivência com a cultura indígena de seu país, o Peru. Angel Rama, no ensaio Meio século de narrativa latino-americana, observa que o romancista de Os rios profundos tentou construir “uma imagem interior e não exterior do índio, substituir o autômato da exploração e das alegações por uma criatura viva e próxima que pode ser reconhecida pelo leitor como um igual”. Por isso não é fácil traduzir Arguedas, como não o foi trasladar para outras línguas a obra de Guimarães Rosa (como bem atesta a correspondência entre o escritor de Grande sertão e seu tradutor alemão, Curt Mayer-Clason). Aqui, prefiro a palavra ‘língua’: vai além de ‘idioma’: língua diz o quanto textos doem à boca, como se estivéssemos a sentir o gosto das terras das Punas de um certo José, ou dos Gerais, de um certo João.
É comovente a leitura do diário de José María Arguedas, cuja primeira parte abre seu último e póstumo livro, Zorro de arriba, zorro de abajo, escrito antes de seu suicídio, cometido em novembro de 1969. Nas páginas do diário, inscritas no livro, Arguedas comenta suas conversas com João Guimarães Rosa, seu grande amigo, “esse Embaixador tão majestoso”, que num momento de depressão e intimidade, revelou ao peruano que os dois haviam ‘descido’ ao âmago de seu povo e não o haviam ‘descido’. De fato, entre os escritores latino-americanos foram dos raros que compreenderam e interpretaram a vida e a linguagem dos ‘de baixo’. E é certamente o mergulho nesse encontro de águas que fez Antonio Cornejo Polar observar que, no Zorro de arriba, zorro de abajo, “os componentes andinos são de tal magnitude e exercem tão decisivas funções, que é legítimo pensar que nessa novela, pela primeira vez, a racionalidade indígena é que dá a razão da modernidade”. Essa afirmação bem poderia ser repetida no que se refere à ‘racionalidade sertaneja’ de Guimarães Rosa.
Destaca-se no Diário inusitado de Arguedas, a página escrita no dia 17 de maio de 1968. Dirige-se a João (Guimarães Rosa), já morto, para contar o episódio de seu encontro sexual com uma pobre e prenha camponesa da aldeia de Ukuhuay e pergunta : “Por qué me dirijo a ti?”. E, após fazer considerações sobre as dificuldades para falar “com uma mínima limpeza”, confessa: “Assim somos os escritores de províncias, este que por terem sido comido pelos piolhos, chegamos a entender Shakespeare, Rimbaud, Poe, Quevedo, mas não o Ulisses”. Provincianos, que somos todos, segundo ele, de nações e do mundo, “que é também uma esfera, um estrato bem fechado, o do ‘valor em si’”.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Postado em 9 de setembro de 2009

Sou mais Maradona...



Não entendo de futebol, mas gosto dos comentários de Ralf Carvalho. Digo-me que se os críticos escrevessem sobre literatura como ele fala de futebol nossa vida literária teria outro encanto. Não entendo de futebol, mas não gosto de Pelé: prefiro Maradona. Ao lado dele, Dunga parece um gerente de banco; do mesmo jeito que Pelé sugere um executivo a fazer o marketing de si mesmo. Se futebol é paixão, nada melhor do que o tango para traduzi-la em passes de beleza e desespero. Que importa se Maradona transmite a desgraça e rói as unhas nos cantos do gramado? É assim que ele vai se tornando personagem de tragédia, como o foi Garrincha, certamente o mais brasileiro de todos os jogadores. Não entendo de futebol, mas prefiro o futebol arte àquele pensado pelos Franz Beckenbauer, jogado como partidas virtuais, arquiteturas de gráficos e cronômetros. Quando vi Maradona no seu desespero, veio-me a imagem fugaz de um touro se arremessando contra as traves, um bólido azul-celeste dominando a geométrica verdura, onde só ele parecia ter o domínio e a maestria. Maradona é a tragédia do Che gravada no braço; Pelé, o Brasil do “ame-o ou deixe-o” dos anos 70. Mesmo torcendo pelo Brasil, sou mais Maradona...

quarta-feira, 23 de junho de 2010


Pequeno exercício
sobre um poema de Paul Louis Rossi

Pequeno exercício de tradução sobre um exercício poético, manuscrito, de Paul Louis Rosssi, que me foi entregue por ele, após o almoço e uma longa conversa que se estendeu por uma tarde de dezembro, no Le Rostand, ao lado do Jardim de Luxemburgo :


Museo je
suis moissi

rocella tinctoriale
rouge piquante

cornicularia
capillacée d’un

beau vert épinard
lichen scriptus

couvert de petites
lignes noires inclinées

mousses lécanores
constellations de rivages

moisissures verdâtres
du ciel

***

Mouseîon sou
o mofado

rocella tinctoria
rubro picante

cornicularia
capilária de um

belo verde espinafre
líquen scriptus

vestido de mínimas
negras linhas inclinadas

espumantes lecanoras
espraiadas constelações

esverdeados bolores
do céu

Kaka Werá Jecupé


Leiam o que escreveu Kaka Werá Jecupé, escritor brasileiro, índio tapuia txucarramãe, desconhecido das antologias acadêmicas. Até quando?


“Para o tupi-guarani, ser e palavra, ser e linguagem, são uma só coisa. A palavra que designa ser é a mesma que designa palavra. Ayvu: alma e som. A própria palavra tupi significa som-em-pé. Nosso povo distingue o ser como tom de uma grande música cósmica, regida por um grande espírito criador, o qual chamamos Namandu-ru-etê ou Tupã, que significa o som-que-se-expande. O ser humano é visto como uma vibração, um ato pulsante. É a partir daí que começa a relação do tupi-guarani com a palavra. Um dos nomes da alma é neeng, que também significa fala. Um pajé é aquele que emite neeng-porã, aquele que emite belas palavras. Não no sentido da retórica. Não. O pajé é aquele que fala com o coração. Porque fala e alma são uma só coisa. Um é o que um fala”.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

CBN - A rádio que toca notícia - Tempo de Letras

CBN - A rádio que toca notícia - Tempo de Letras
José Saramago

Texto lido no encerramento do Fórum Social Mundial de 2002.

"Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.
Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar.
Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta.
Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então,
desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça.
Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...
Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.
Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia.
Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações.
Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos.
Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.
E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo.
Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica.
E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes...
Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.
Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor."


In: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16709&boletim_id=715&componente_id=11973



Traduzi este belo e importante texto de Paul Louis Rossi, amigo e poeta francês, de quem traduzi alguns poemas para a antologia Regards transatlantiques. O trecho faz parte do livro Paysage intérieur, inscapes, editado em 2004 pela Prefeitura de Nantes, numa série de homenagens feitas ao autor, em 2004.

Inscapes

Paul Louis Rossi

Traduz-se inscape, em francês, por Paysage intérieur (Paisagem interior). Essa interpretação é satisfatória, mas não revela a complexidade da noção d’inscape, elaborada por Gerard Manley Hopkins, poeta de língua inglesa.
Embora ele seja pouco traduzido, e quase desconhecido na França, considero Hopkins um dos maiores poetas da lírica contemporânea. Nasceu em 28 de julho de 1844, em Stratford, Inglaterra. Jovem, frequentou a Grammar School de Sir Robert Chomondesley, em Highgate, onde residiram Coleridge, De Quincey e Keats.
Em 1866, Hopkins abandona a religião anglicana e se converte ao catolicismo. Na Inglaterra vitoriana, essa conversão equivalia a um suicídio social. É renegado pelos amigos, e até mesmo pela família. Ingressa nos Jesuítas, em Roehampton, em 1868, no País de Gales. E queima seus poemas de juventude.
Em 1872, na ilha de Man, descobre Duns Scot. Este, que é chamado o Doutor Sutil – teólogo da escola franciscana, no século XIII, que polemizou com a doutrina de Tomás de Aquino – vai reconciliar Hopkins consigo mesmo, com o mundo sensível, a arte, a poesia.
O teólogo escossês pensava que a divindade se encontrava em cada elemento do universo, as plantas, as rochas, as nuvens, como na religião dos celtas. Scot escrevia: “a revelação tem um papel prático no universo; ela preenche a razão onde ela não pode chegar”.
A partir dessa filosofia de Duns Scot, Hopkins construiu a noção de Instress, que pode ser explicado como:
Golpe desferido no observador pela força intrínseca em todo objeto que lhe dá força e vida...
Ele toma como exemplo a nuvem para explicar essa noção:
A forma de uma nuvem é modelada: instressed pelo vento...
Para apreender essa noção de inscape, é preciso reter essa imagem da nuvem que se compõe e se descompõe ao sopro do vento. Ele anota no seu diário:
Esta manhã, inscape de nuvens...
É necessário admitir que essa imagem da nuvem, inscrita na visão é, no entanto, fugitiva. O inscape não se perpetua, surge através de um sujeito que observa o mundo e que é susceptível de reconhecê-lo na sua integridade, sua originalidade e sua beleza. Mas ele desaparece à menor brisa.
A própria palavra inscape é um neologismo forjado por Hopkins a partir de landscape. Portanto, paisagem interior, mas, ainda, motivo íntimo, esquema do intrínseco:
O instante apreendido na sua própria forma...
Como John Ruskin e William Turner, Hopkins exprime uma noção totalmente moderna da estrutura totalizante de uma paisagem, da forma de uma nuvem, de cada onda que se espraia.
Gerard Manley Hopkins morre em 8 de junho de 1889 na seu retiro de Tullaberg. Está enterrado no Jesuit Plot de Glanevin, na Irlanda. Ele era obcecado pela miséria material e moral do povo. Ele escreveu a Robert Bridges, em 1871:
No entanto, temo que estejamos às vésperas de alguma grande revolução. É terrível dizer, mas, num certo sentido, sou comunista...
Essas idas e vindas na existência e o laboratório do escritor inglês nos permite escolher o título de Paysage intérieur (Paisagem interior)inscape – com a intenção de criar para os visitantes uma evasão, uma visão, um universo mental, uma perspectiva onde eles possam se reconhecer.
Desejo que cada um dos visitantes retenha o que convém a seu espírito e ao seu gosto. A literatura é como a onda, ou a nuvem, que passam. Cada onda apaga um pouco o rastro da precedente, idêntica e diferente, portanto. Cada nuvem traz ao céu sua própria cor. É desejável que cada visitante imagine e leia nesse movimento a realidade e a forma de seu desejo.

quarta-feira, 16 de junho de 2010



Em discussão, prêmios de tradução literária. O melhor é cotejar os textos premiados com outros, como este, de Ivo Barroso, mestre tradutor e poeta...

 Venus Anadyomène

Arthur Rimbaud

Comme d’un cercueil vert en fer blanc, une tête
De femme à cheveux bruns fortement pommadés
D’une vieille baignoire émerge, lente et bête,
Avec des déficits assez mal ravaudés;


Puis le col gras et gris, les larges omoplates
Qui saillent; le dos court qui rentre et qui ressort;
Puis les rondeurs des reins semblent prendre l’essor;
La graisse sous la peau paraît en feuilles plates:


L’échine est un peu rouge, et le tout sent un goût
Horrible étrangement; on remarque surtout
Des singularités qu’il faut voir à la loupe…


Les reins portent deux mots gravés: CLARA VENUS;
—Et tout ce corps remue et tend sa large croupe
Belle hideusement d’un ulcère à l’anus.


Vênus Anadiomene

(tradução de Ivo Barroso)


Qual de um verde caixão de zinco, uma cabeça
Morena de mulher, cabelos emplastados,
Surge de uma banheira antiga, vaga e avessa,
Com déficits que estão a custo retocados.


Brota após grossa e gorda a nuca, as omoplatas
Anchas; o dorso curto ora sobe ora desce;
Depois a redondez do lombo é que aparece;
A banha sob a carne espraia em placas chatas;


A espinha é um tanto rósea, e o todo tem um ar
Horrendo estranhamente; há, no mais, que notar
Pormenores que são de examinar-se à lupa.


Nas nádegas gravou dois nomes: Clara Vênus;
-- E o corpo inteiro agita e estende a ampla garupa
Com a bela hediondez de uma úlcera no ânus.

De: RIMBAUD, Arthur. Poesia completa. Edição bilingue. tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994.
P.s.: A Vênus Anadiomene da ilustração é de Ticiano.

domingo, 6 de junho de 2010


Diário de uma viagem ao horror

Com este título, o jornal espanhol El País publicou, hoje, o relato do escritor sueco Henning Mankell, sobre a tomada por militares de Israel do navio turco em que se encontrava e que fazia parte da flotilha que transportava víveres para a faixa de Gaza. Henning Mankell é mundialmente conhecido e vários de seus livros foram publicados no Brasil, entre os quais O homem que sorria. Após sua libertação, Henning Mankell, já na Suécia, declarou, que o governo de Israel deveria ser processado por pirataria. Além disso, aventou a possibilidade de proibir a tradução de suas obras em hebreu.

No mar (4.30 horas.)

Henning Mankell

(...) "Acabo de conciliar o sono, quando me acordam. Já no convés, comprovo que o grande navio de passageiros estáiluminado por potentes holofotes. De repente, ouvem-se alguns disparos. E compreendo que Israel escolheu o caminho do enfrentamento brutal.
Transcorrida uma hora exatamente, os botes de borracha se aproximam velozmente cheios de soldados mascarados que iniciam a abordagem imediata. Reunimos-nos na cabine de pilotagem. Os soldados se mostram impacientes e querem que desçamos para o convés. Alguém demora e é atingido por uma descarga elétrica no braço. O homem cai no chão. Outro homem que também não se movimentava com a pressa suficiente recebe o impacto de uma bala de borracha. E tudo isso acontece ali mesmo, ao meu lado. É absolutamente real. Pessoas totalmente inocentes tratadas como animais e castigadas por sua lentidão.
Somos agrupados no convés. E ali, permaneceremos durante onze horas, até que o barco atraque em Israel. Os soldados nos filmam de vez em quando, mesmo não tendo qualquer direito a isso. Ao me ver tomando notas, um dos soldados se aproxima e me pergunta o que estou escrevendo. É a única ocasião em que perco as estribeiras. Respondo dizendo que não é da sua conta. Avisto apenas seus olhos e não sei o que está pensando, mas no final dá meia volta e vai embora.
Onze horas imobilizados, amontoados no meio daquele calor, pode ser um método de tortura. Para ir urinar, tenho que pedir permissão. Pão, biscoitos e maçãs é o que nos dão para comer. Tomamos uma decisão conjunta: não pedir que nos permitam cozinhar. Seríamos filmados e isso seria mostrado como um ato de generosidade da parte dos soldados. Assim, nos contentamos com os pães e os biscoitos. É uma humilhação sem igual. (Entretanto, os soldados retiraram os colchões dos camarotes e agora dormem ao fundo da popa.
Durante essas onze horas tenho tempo de dar-me conta o que aconteceu. Fomos atacados enquanto nos encontrávamos em águas internacionais, o que implica que os israelenses atuaram como piratas, não muito melhor do que os piratas que agem na costa da Somália. Por outro lado, no momento em que obrigaram o nosso navio a tomar o rumo de Israel, estávamos sendo sequestrados. Essa intervenção é completamente ilegal.
Entretanto, tentamos falar, elucidar o que sucederia, e nos perguntamos como é possível que os israelenses tenham optado por uma solução que os coloca num beco sem saída. Os soldados nos observam. Alguns fingem que não sabem inglês, porém todos falam e entendem essa língua. Dois deles são mulheres. Parecem preocupadas. Talvez depois, quando tiverem terminado o serviço militar, decidam fugir para Goa e destruir suas vidas se drogando. Isso acontece constantemente."(...)

http://www.elpais.com/articulo/reportajes/Diario/viaje/horror/elpepusocdmg/20100606elpdmgrep_2/Tes