domingo, 30 de agosto de 2009


Marcel Morin, um cônsul...

Há alguns dias, comentei com alguém que o ano França-Brasil não podia ocorrer sem que fosse citado Marcel Morin, antigo cônsul francês no Recife. Hoje, recebi das mãos de Luiz Arraes, Lula, o livro escrito por ele e editado pela 7Letras, Todo diálogo é possível – conversas com Miguel Arraes,meu pai. Na página 47, encontro o que procuro: “Marcel Morin, gaulista e resistente do réseau do general (De Gaulle) tomou conhecimento da proibição, imposta a meu pai, de acesso ao território francês. Indignado, virou o Quai d’Orsay de cabeça para baixo e desfez a situação. Na sua primeira chegada, lá estava Morin com seus braços abertos. Um herói recebendo um refugiado. Um herói que passara quatro anos em Dachau, perdera uma perna e, ao ser libertado, nunca mais, até a sua morte, deixou a tristeza entrar em sua vida”.
Era assim, Marcel Morin, o cônsul francês que foi expulso do Brasil em 64 e brincava o carnaval nos Inocentes do Rosarinho...
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quinta-feira, 27 de agosto de 2009


Questão de gosto...

Tento. Mas não consigo achar Manuel Bandeira um grande poeta. Alguns poemas interessantes, o sentido do artesanato poético afinado na solidão da tuberculose, uma vasta cultura erudita, grandes traduções (como a do inesquecível Noturno do poeta colombiano José Assunción Silva). Mas nada que o ombreie aos grandes poetas de seu tempo. Além disso, Mafuá de Malungo é um amontoado de besteiras e o “Recife com arroz e sem Arraes” um medíocre jogo de palavras, que apenas contribuiu para a propaganda do conservadorismo mais medíocre do país. Também não foi o único poeta da Rua da União. Que se leia o Perfil de Joaquim Cardozo, escrito pelo filósofo Evaldo Coutinho. Nela também morou o poeta de Signo estrelado (mas ninguém fala disso), num sobrado com corredor independente, daqueles “que conservam em mistério a sala de visitas”, como escreveu no poema Luz na galeria. Com o passar do tempo iremos, devagar, penetrar no mistério que circunda este grande poeta universal, que também habitou a Rua da União...
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A ilustração da colagem é de Paul Klee
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sábado, 22 de agosto de 2009


Receita de escritor
(para outros festivais)

Hoje sonhei com uma árvore no meio do deserto.
Concluí que nela havia um passarinho,
passarinho voa,
quem voa tem asas.
E resolvi escrever um conto usando essa metáfora.
Deitei na rede, saquei do lápis (nada de esfereográfica)
e enquanto ouvia um velho disco de Raul Seixas,
chegou Sherezade, de blusa e calça jeans.
Pensei no título.
Algo que pudesse comover mãe e filha ao mesmo tempo.
Rabisquei: “Triste como ela”.
Puxei o laptop para verificar se no Google
alguém havia escrito algo com o mesmo título.
Esbarrei com um tal de Onetti.
Pedi uma sugestão a Sherezade, classe média periférica em ascensão,
metade da população brasileira,
meu mercado editorial.
- A essa hora, bicho?
Deu o estalo e depressa escrevi:
“A rede”.
O resto é sempre mais fácil:
meu léxico é o lexotan.
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A colagem é feita com pinturas de Maigritte
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quinta-feira, 13 de agosto de 2009


Osman Lins sobre Anatol Rosenfeld

(...) “Um rabino pronunciou as orações rituais enquanto o corpo descia à cova e jogavam terra sobre ele. Fazia sol e ventava, o vento arrebatava os lenços com que alguns homens, segundo o costume judeu, tinham coberto a cabeça. O chão brasileiro, que ele adotara e que lhe fora mais ameno que a terra do seu nascimento (à qual nunca voltou), abria-se e acolhia-o materialmente, para sempre. A migração era definitiva. Enquanto o via desaparecer, aprendi, de súbito, como num diagrama, a humildade e a grandeza da sua trajetória. Aquele homem pequeno e quase sempre sorridente empreendera com o mundo um combate de que poucos têm notícia. Amando os livros e o ato de escrevê-los, dera de ombros a tudo e a eles consagra-se. Era, de certo modo, um herói da palavra – e, portanto, com algo de patético, como todos os heróis. (...)
Movido por um impulso obscuro, indaguei do rabino, teminada a cerimônia, se sabia que acabara de oficiar a inumação d um grande homem. Inquietava-me o receio de que Anatol Rosenfeld, para quem as palavras sempre haviam tido uma importância extrema, pudesse ser entregue à terra com palavras ocas e sem que o oficiante tivesse uma idéia do que fora em vida o morto.
Olhou-me o rabino com uma certa surpresa, talvez com a suspeita de haver cometido um engano irreparável, e repondeu-me:
-‘Não. Quem era ele?’.”
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O texto é parte de um artigo de Osman Lins publicado em 28.04.1974, no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo e reproduzido no livro Vitral ao sol, organizado por Ermelinda Ferreira (Editora Universitária da UFPE, 2004). A ilustração é de Chagall.
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quarta-feira, 12 de agosto de 2009


Ruy Espinheira Filho
Leu um de meus poemas num e-mail de Carlos Machado.
Quis conhecer mais. Enviei -lhe os últimos livros.
Hoje chegou o dele, Poesia Reunida (Record, 1998),
do qual retirei esta pequena mostra:

Herança
Ruy Espinheira Filho

Rua Ramalho Ortigão, nº 1.
Ao longo dos domingos nos sentávamos
todos à mesa oval, bebendo para
que as musas perdessem a timidez
e tomassem lugar ao nosso lado.
E elas baixavam, sempre, em meio à tarde
e ali ficavam até mesmo quando
só um restava ouvindo o que cantavam
as sereias no cálice de porto.
Isso deixo aos meus filhos: esta herança
do que ocorria, em certa era, na
Rua Ramalho Ortigão, nº 1,
onde não há domingos há onze anos.
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A ilustração é de Paul Klee
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sexta-feira, 7 de agosto de 2009


Nossa ópera-bufa

Habituada às novelas das 8, a lumpemintelectualidade desfruta de um novo divertimento: a ópera-bufa. Com uma diferença: enquanto as primeiras – as novelas – criam ficções que mimetizam coisas reais, nossa ópera-bufa é a própria realidade. E em vez de nos fazer rir, nos oprime e constrange. A verdadeira ópera-bufa deveria ser ligeira, espirituosa e satírica, em poucos atos, com personagens burlescos, engraçados. A nossa, é uma ópera-bufa sinistra: desenrola-se num continuum, não são burlescos seus personagens, mas nos burlam com o mais absoluto cinismo. São inúmeros seus atores, escolhidos malgrado nosso desejo. Mas a eles oferecemos o sustento. Porque, na nossa ópera-bufa, apenas nós somos os bufões...
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A ilustração é de Botero
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terça-feira, 4 de agosto de 2009


A dialética da compaixão

Everardo Norões

Todas as janelas da literatura de Ronaldo Brito – seja ela conto ou teatro – abrem-se para uma cidade imaginária. No entanto, essa cidade existe. E o que a torna real são seus personagens, seres que habitam ruas, praças e, sobretudo, nossos silêncios. Por onde passei ou vivi, encontrei personagens como Maria Caboré ou Sebastião Candeia, mas que se chamavam, por vicissitudes da geografia ou da cultura, Mustafá ou Mohamed, Ibraimo ou Abdelkader.Para a literatura, as tragédias humanas necessitam de um cenário; mas pouco importa se esse cenário é Crato, Recife, ou um lugarejo mítico situado em algum cosmos particular, como a Santa Maria de Onetti.No fundo, ele é sempre o disfarce de um lugar que não existe. E é esse o grande milagre da literatura.
O Crato de Ronaldo é um lugar universal e ao mesmo tempo extremamente seu, porque apenas ele o observa assim: como a Orã de Camus, a Cairo de Taha Hussein, a Maputo de Mia Couto, ou a Recife de Joaquim Cardozo.
Numa visita da banda cabaçal Irmãos Aniceto, ao país do Sul, um de seus integrantes foi levado a um alto edifício. E, então, alguém lhe perguntou o que avistava dali. – O Crato!, respondeu. Ronaldo Brito é feito do mesmo fogo e do mesmo barro desses Irmãos Aniceto.
Os personagens de Ronaldo são protagonistas de um sertão destruído, território da desolação, onde os valores arcaicos foram triturados por uma espécie de máquina infernal, mas que sobrevivem pela alquimia da imaginação,única matriz da literatura. Maria Caboré, que entrava “na simplicidade das pedras do rio, onde sentava para enxugar-se do banho”, é sua Santa Maria Egipcíaca; Sebastião Candeia, personagem de um dos contos do livro, é uma metáfora do sofrimento metafísico do autor: o combate contra si mesmo e contra esse seu mundo desmantelado e perdido. É também a contrapartida do absurdo jogo da criação, no qual ele se percebe o eterno e inevitável perdedor: por mais que pense ter criado um novo invento acaba por se dar conta de que apenas repete os pequenos dramas do homem de qualquer lugar.
A literatura de Ronaldo Brito, no seu Livro dos homens, opõe-se a uma outra literatura que sugere um sertão de brasões, de fidalgos e de reis, simples liturgia de veneração às sombras. As sombras do que somos. É uma literatura do real transfigurado, e não a figuração do irreal.
O fio da meada dos contos do Livro dos Homens nos conduz à linhagem clássica de Guy de Maupassant: narrativas com inícios e fins, pontuadas pelas contingências do humano, marcadas pelo sentido da exatidão, o rigor do estilo.
Mas, o que mais surpreende e cativa nestes contos de Ronaldo (entre os quais destacaria Qohélet) é aquela mesma paixão pelo próximo que transborda dos livros de um outro escritor, médico, como ele: Miguel Torga, o grande mestre do conto português.
Em cada uma das histórias deste livro encontramos uma pequena epopéia da loucura e da desgraça do Livro dos homens, que são, afinal, os eternos alimentos do entretenimento e da compaixão do Leitor.
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P.S. Ronaldo acaba de receber o prêmio de melhor livro do ano do governo de São Paulo, com o livro Galiléia. Estamos todos de parabéns...

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domingo, 2 de agosto de 2009

"Donde termina la gramática empieza el gran arte".
(Pedro Henríquez Ureña, citado por Ernesto Sabato, em Antes del fin).
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A ilustração é de Inés Tolentino, pintora dominicana.
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