Aqui jaz a biblioteca de Álvaro Lins
Quando todo mundo alardeia a
chegada do anjo do progresso, uma velha biblioteca incomoda: a do escritor
Álvaro Lins. Há anos ela vive relegada às prateleiras do atraso, na cidade onde
nasceu há cem anos, Caruaru. Uma biblioteca que acabou por se transformar na
metáfora de seu próprio dono. De fato, poucos intelectuais brasileiros pagaram
tão caro por dizer tudo e por não temer confrontos quando a palavra destoava
dos acontecimentos. Tanto na escrita, quanto na diplomacia, ele foi assim. Severo
no avaliar escritores consagrados, Álvaro Lins não hesitou a atitudes como a de
entregar o cargo de embaixador em Portugal, naquela hora em que os compromissos
do governo brasileiro com a ditadura salazarista passaram a ferir suas convicções.
O mesmo faria, anos depois, o escritor Octavio Paz, ao renunciar ao posto de
embaixador na Índia, após o episódio conhecido como o massacre da Praça
Tlatelolco. Não tivessem deixado uma obra importante os dois certamente teriam
sido relegados pelos registros oficiais, ‘enterrados’ como a biblioteca de
Álvaro Lins.
Acontece que os objetos às
vezes dizem melhor do que a fala de seus próprios donos. Pois a leitura da
História nem sempre é feita pelos livros, que costumam deformar e mistificar
gente e acontecimentos. Objetos podem desvelar a realidade, como as substâncias
químicas revelam fotografias. Ou como a arqueologia, que precisa cavar fundo, esmiuçar
detritos, pedregulhos, para encontrar a flecha, o cadáver, o simulacro.
Que conversas, anotações
mantêm entre suas páginas aqueles livros do escritor de Os mortos de sobrecasaca? Que comentários sobre o que seguia pelo
Mundo? Que rabiscos sobre frases destoantes de algum escritor em busca da
glória literária? Quem dentre os pares teria infringido promessas, colaborado
com descalabros, foram ali observados pelo cru e implacável registro de um dos
críticos literários mais importantes da América Latina?
Não existe acaso para o
esquecimento. Nossa história é como álbum, para o qual recolhemos as figuras
que iremos colar para suprir a memória, quando esta não mais responder ao
chamado do afeto.
Uma biblioteca diz muita coisa;
por isso, às vezes, precisa ser torturada, destruída, esquecida. Seus livros podem
ser sequestrados, entregues ao mofo, ao descaso. Depois, deve ser transportada
de lugar a lugar, como subversivo, para o qual nunca existirá ‘comissão da
verdade’. Apenas ficará à espera de alguém que, finalmente, venha colar à porta
do último sótão, a placa com o dizer como este: “Aqui jaz a biblioteca de Álvaro
Lins”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário