terça-feira, 30 de junho de 2009


A paisagem nas nuvens

Quem leu Los siete locos, ou El Lanzallamas, ou conhece o fascínio exercido por Roberto Arlt sobre toda uma geração de escritores latino-americanos, deve ler o último lançamento com escritos inéditos do escritor argentino: El paisaje en las nubes (Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina S.A. 2009. 766 páginas). São crônicas escritas por ele para o jornal El Mundo, entre 1939 e 1942 (ano de sua morte). Interpretações muito especiais em torno da notícias que recebia das agências de imprensa, num momento complexo da história moderna, marcado pela ascensão do nazi-fascismo. Sobre o livro escreveu Ricardo Piglia: “Arlt trabalha diretamente sobre a interpretação da notícia. Essas crônicas estão construídas basicamente sobre uma cena de leitura: Arlt comenta as notícias das agências que lê. E seu modo de ler é extraordinário. Amplifica, expande, associa, muda de registro e de contexto as notícias que recebe. E as revela, as torna visíveis. Arlt intitulou a maioria de suas crônicas usando o modelo de uma técnica gráfica (as águafortes, o ácido que fixa as imagens) porque quer fixar uma imagem, registrar um modo de ver.
O livro de Arlt revela um jornalismo feito por um escritor excepcional, que transforma a simples notícia em literatura...

segunda-feira, 29 de junho de 2009


Mario Benedetti
(1920-2009)

A livraria do shopping Punta Carretas exibe um cartaz com a foto e um poema de Mario Benedetti (que abaixo transcrevemos), cujo último livro, Andamios (Andaimes) é uma espécie de ficção autobiográfica de um ‘desexiliado’, como aqui são chamados os ex-exilados políticos. Mario Benedtti foi um deles. “Para sempre no coração dos uruguaios”, reza o cartaz. Ironia dos tempos, o shopping de Punta Carretas era um cárcere famoso, de onde fugiram em 1971 os 111 tupamaros, entre eles Pepe Mujica, que nas eleições de ontem firmou seu nome como possível futuro presidente do Uruguai. Mujica foi barbaramente torturado e passou 14 anos na prisão, alguns deles dentro de um poço, no mais absoluto isolamento.
Em Andamios, há uma épigrafe de Fernando Pessoa: “O lugar a que se volta é sempre outro/A gare a que se volta é outra,/Já não está a mesma gente, nem a mesma luz,/nem a mesma filosofia”.
Pergunto-me por que o Uruguai, com apenas 3 milhões de habitantes, menos da metade da população de Pernambuco, pode ter uma literatura tão rica e poderosa. E concluo que na grande literatura nunca haverá lugar nem para o medo, nem para a subserviência, nem para a covardia...
Pasatiempo

Mario Benedetti

Cuando éramos niños
los viejos tenían como treinta
un charco era un océano
la muerte lisa y llana
no existía
luego cuando muchachos
los viejos eran gente de cuarenta
un estanque era océano
la muerte solamente
una palabra

ya cuando nos casamos
los ancianos estaban en cincuenta
un lago era un océano
la muerte era la muerte
de los otros
ahora veteranos
ya le dimos alcance a la verdad
el océano es por fin el océano
pero la muerte empieza a ser
la nuestra.
(Inventario Uno)
___

sábado, 27 de junho de 2009


No céu dos poetas


Em poucos dias desapareceram dois grandes escritores uruguaios, pertencentes à conhecida Geração de 45: Mario Benedetti e Idea Vilariño. Nasceram no mesmo ano (1920), morreram no mesmo ano (2009). Dois destinos de geração, exílio e literatura. Como registro, um ensaio* sobre Idea Vilariños obtido no site do El País, do escritor espanhol Juan Cruz, e uma tradução de um de seus poemas:

Uma vez

Sou meu pai e minha mãe
sou meus filhos
e sou o mundo
sou a vida
e não sou nada
ninguém
um pedaço animado
uma visita
que não esteve
nem estará depois.
Estou estando agora
quase não sei mais nada
como uma vez estavam
outras coisas que foram
como um céu distante
um mês
uma semana
um dia de verão
que outros dias do mundo
dissiparam.
.
Soy mi padre y mi madre/soy mis hijos/y soy el mundo/soy la vida/y no soy nada/nadie/un pedazo animado/una visita/que no estuvo/que no estará después.//Estoy estando ahora/casi no sé más nada/como una vez estaban/otras cosas que fueron/como un cielo lejano/un mes/una semana/un día de verano/que otros días del mundo/disiparon.
...

..

sábado, 20 de junho de 2009



De Makkah - 5 versículos


Em nome de Allah, O Misericordioso, O Misericordiador
1- " Dize: " Refugio-me no Senhor da Alvorada
2- " Do mal de quem por Ele foi criado,
3- " Do mal da tenebrosa noite, quando se estende,
4- " Do mal dos assopradores dos nós,
5 - " E contra o mal do invejoso quando inveja"

***

quarta-feira, 10 de junho de 2009


Detrás da janela,
uma lua qualquer.
Prefiro a borboleta girando,
movida a bateria solar:
luz com destino certo,
a marcar
o tom escuro do calendário.
Ele cantou:
A saudade não é um rosto que fica,
é trem na montanha’
.
Um trem passa.
A montanha permanece
na sua imobilidade primeira.
Sem rosto ou disfarce.
E a borboleta volta a girar.
Enquanto desligam
os últimos tubos da vida
e os aviões procuram
vagos destroços
no mar...
.
Para Armando Lessa (1955-2009), i.m.
___
A ilustração é de Paul Klee, intitulada Ad Parnassum
_

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Cándido López, o maneta de Curupaytí

O pintor argentino Cándido López (1840-1902) retratou de modo nada acadêmica a ignominiosa Guerra do Paraguai. O maneta de Curupaytí está retratado na bela novela do grande escritor paraguaio Raul Roa Bastos ‘Em frente à frente argentina/Em gente à frente paraguaia’ (in O Livro da Guerra Grande. Rio de Janeiro. Editora Record.2002).
Escreve Roa Bastos:
“Com a matéria indócil das texturas e da cores, mortificando as horas do descanso depois das fadigas, um homem pinta Escenas de la Guerra del Paraguay para que no espelho sem tempo nem espaço da realidade outra sombra contraponha Escenas de la Destrucción del Paraguay”.(...)

____

domingo, 7 de junho de 2009

Joaquim Cardozo, de volta

Everardo Norões

Chegou finalmente às livrarias, publicado pela editora Nova Aguilar, em co-edição com a editora Massangana, o livro Poesia completa e prosa, do engenheiro calculista de Brasília e um dos maiores poetas brasileiros, Joaquim Cardozo. Há setenta anos, ele era exonerado pelo secretário de Viação e Obras de Pernambuco, "a bem do serviço público". O motivo alegado: "incapacidade técnica para o exercício das funções de engenheiro-auxiliar da Diretoria de Viação, Obras Públicas e Oficinas. Sem trabalho, foi obrigado a exilar-se e partiu das várzeas do Capibaribe em busca dos ares do mundo. Somente regressaria ao seu Recife de 'decrépitas calçadas' pouco antes de tomar lugar no vagão do 'último trem subindo ao céu'. Na apresentação da poesia de Joaquim Cardozo, Marco Lucchesi compara esse trem do poema Trivium a outros da lírica moderna, em especial o "G.W.B.R", de Jorge de Lima, e o "Presidente do Globo Terrestre", do poeta russo Vielimir Khliébnikov. E conclui que Joaquim Cardozo foi o primeiro poeta "a tirar o trem dos trilhos", numa expressão feliz que traduz uma inusitada invenção: a viagem, segundo Marco Lucchesi, "de um poema transfísico, por iniciar-se e se espraiar em todos os horizontes do universo, das cem milhões de estrelas em nossa galáxia e dos tantos multiuniversos, aos cem milhões de neurônios no céu da mente humana, à pura abstração".

De fato, a poesia de Joaquim Cardozo - além de sua grandeza intrínseca, evidenciada por inúmeros críticos - tem uma característica especial: a única a reunir a racionalidade da ciência e o 'enigma da poesia', numa empresa nunca antes observada na literatura brasileira. É possível que Carlos Drummond de Andrade tenha se apercebido dessa estranha proeza - equivalente à de um Goethe ou à de um Khliébnikov - , quando declarou que A Nuvem Carolina era um de seus poemas prediletos. No poema, Joaquim Cardozo percebe nos gestos de uma nuvem uma possibilidade de fala. Segundo ele, da "formalização dos gestos da natureza podia nascersempre uma linguagem". Também na penumbra do laboratório do poema O silêncio expectante e a voz inesperada, na busca da descoberta do "espaço completo e geral/onde se pudesse definir a pulsação originária", ouve-se, através de "uma fresta imperceptível no rádio", uma longínqua voz de mulher cantando nas Antilhas... Essas invenções poéticas, entrelaçadas aos descobrimentos das ciências, nos conduzem ao mundo extraordinário de Joaquim Cardozo, um 'homem universo', conforme o definimos na introdução à sua obra, que tivemos o prazer de organizar e acaba de sair do prelo. Chamado de poeta bissexto por Manuel Bandeira (que depois faria a devida retificação), afastado de Pernambuco por ato burocrático e prepotente, Joaquim Cardozo está de volta para nos transportar através de seus belíssimos textos. Textos que reafirmam o quanto sua obra é contemporânea. Contemporaneidade entendida como trama de tempo e de espaço, a nos lançar num movimento dialético de atração e de repulsa, que nos distancia e ao mesmo tempo nos permite enxergar o oculto: o lado escuro que a razão não consegue alcançar. Aquilo que explica, finalmente, porque toda verdadeira obra de arte, todo grande poema, não tem data.

in Diário de Pernambuco 4/6/2009
____

sexta-feira, 5 de junho de 2009


Infância

Paulo Mendes Campos

Há muito , arquiteturas corrompidas,
Frustrados amarelos e o carmim
De altas flores à noite se inclinaram
Sobre o peixe cego de um jardim.
Velavam o luar da madrugada
Os panos do varal dependurados;
Usávamos mordaças de metal
Mas os lábios se abriam se beijados.
Coados em noturna claridade,
Na copa , os utensílios da cozinha
Falavam duas vidas diferentes,
Separando da vossa a vida minha.
Meu pai tinha um cavalo e um chicote;
No quintal dava pedra e tangerina;
A noite devolvia o caçador
Com a perna de pau, a carabina.
Doou-me a pedra um dia o seu suplício.
A carapaça dos besouros era dura
Como a vida — contradição poética —
Quando os assassinava por ternura.
Um homem é, primeiro, o pranto, o sal,
O mal, o fel, o sol, o mar — o homem.
Só depois surge a sua infância-texto,
Explicação das aves que o comem.
Só depois antes aparece ao homem.
A morte é antes, feroz lembrança
Do que aconteceu, e nada mais
Aconteceu; o resto é esperança.
O que comigo se passou e passa
É pena que ninguém nunca o explique:
Caminhos de mim para mim, silvados,
Sarçais em que se perde o verde Henrique.
Há comigo, sem dúvida, a aurora,
Alba sangüínea, menstruada aurora,
Marchetada de musgo umedecido,
auna e flora, flor e hora, passiflora,
Espaço afeito a meu cansaço, fonte,
Fonte , consoladora dos aflitos,
Rainha do céu , torre de marfim,
Vinho dos bêbados, altar do mito.
Certeza nenhuma tive muitos anos,
Nem mesmo a de ser sonho de uma cova,
Senão de que das trevas correria
O sangue fresco de uma aurora nova.
Reparte-nos o sol em fantasias
Mas à noite é a alma arrebatada.
A madrugada une corpo e alma
Como o amante unido à sua amada.
O melhor texto li naquele tempo,
Nas paredes, nas pedras, nas pastagens,
No azul do azul lavado pela chuva,
No grito das grutas, na luz do aquário,
No claro-azul desenho das ramagens,
Nas hortaliças do quintal molhado
(Onde também floria a rosa brava)
No topázio do gato , no be-bop
Do pato , na romã banal , na trava
Do caju , no batuque do gambá,
No sol-com-chuva, já quando a manhã
Ia lavar a boca no riacho.
Tudo é ritmo na infância, tudo é riso,
Quando pode ser onde, onde é quando.

A besta era serena e atendia
Pelo suave nome de Suzana.
Em nossa mão à tarde ela comia
O sal e a palha da ternura humana.
O cavalo Joaquim era vermelho
Com duas rosas brancas no abdômen;
noite o vi comer um girassol;
Era um cavalo estranho feito um homem.
Tínhamos pombas que traziam tardes
Meigas quando voltavam aos pombais;
Voaram para a morte as pombas frágeis
E as tardes não voltaram nunca mais.
Sorria à toa quando o horizonte
Estrangulava o grito do socó
Que procurava a fêmea na campina.
Que vida a minha vida ! E ria só.

Que âncora poderosa carregamos
Em nossa noite cega atribulada!
Que força do destino tem a carne
Feita de estrelas turvas e de nada!
Sou restos de um menino que passou.
Sou rastos erradios num caminho
Que não segue, nem volta , que circunda
a escuridão como os braços de um moinho.
___

A visão da crise por Ernest Mandel

"A segunda-feira negra do 19 de outubro de 1987 constitui um golpe muito duro para a economia capitalista internacional. Nesse dia, e no dia seguinte, as bolsas sofreram uma baixa das ações superior à da “quinta-feira negra” de Outubro de 1929 na Wall Street. As perdas totais unicamente dos acionistas americanos foram avaliadas em 1.000 milhões de dólares. Para dar uma ordem de grandeza, os particulares perderam quase a metade do equivalente de toda a dívida pública dos Estados Unidos. As perdas mundiais ultrapassaram 1.500 bilhões de dólares, 50% a mais do que toda a dívida do 'Terceiro Mundo'.
O fato de a Bolsa recuperar nos dias seguintes uma parte dessa baixa, não significa que essas perdas foram anuladas. Não são as mesmas pessoas que perderam e depois ganharam. A grande maioria dos pequenos e médios acionistas sofreu a perda sem ganhar o que quer que seja nos dias seguintes. A queda brutal das cotações que se estendeu a todas as bolsas do mundo capitalista reflete a enorme instabilidade monetária que reina hoje sobre a economia capitalista internacional.
O comentário dos praticantes do método Coué *, a começar pela senhora Thatcher, segundo os quais não haveria razão para inquietações, pois a “economia real” estaria sã, é tocado pela marca da cegueira, se não pela vontade deliberada de enganar o público.
O que é típico da especulação da Bolsa, é que ela não reflete nunca a situação do momento. Antecipa, ou seja, traduz previsões sobre o que se passará no depois de amanhã. Neste sentido, a queda das cotações da Bolsa corresponde aos temores de uma nova recessão generalizada que se espalham cada vez mais. Em função “da economia real”, estes temores são completamente fundados. É possível dizer que um 'novo 1929' já começou? A queda das cotações de Wall Street desencadeará uma crise econômica da gravidade daquela ocorrida após o outubro de 1929? A pergunta é mal colocada por duas razões.
Em primeiro lugar, para que um desmoronamento das Bolsas desencadeie uma grave crise de superprodução são necessários vários fatores concomitantes. A Bolsa revela-se certamente o elo mais fraco da cadeia. Mas outros elos devem saltar de modo a que toda a cadeia possa vir a ceder. Instituições financeiras devem ser golpeadas mortalmente para que seja paralisada a expansão do crédito; grandes firmas industriais devem ir à falência; as encomendas, a produção corrente, o emprego, devem recuar sensivelmente. Tudo isso ainda não aconteceu. Tudo isso pode acontecer nos próximos meses.
Em seguida, em 1929 também não aconteceu de repente, com a “quinta-feira negra”, o desemprego de 30% nos Estados Unidos e de 40% na Alemanha. Foi necessário mais de dois anos para se chegar a esse resultado catastrófico. Paradoxalmente, para o capitalismo, o meio que os governos imperialistas imaginaram para parar a queda de Wall Street é mais grave do que a própria queda própria: injeção de novos créditos, uma nova inflação da massa monetária, uma nova ampliação da montanha de dívidas. O fato que isto esteja acompanhado, contra qualquer lógica, de uma baixa momentânea das taxas de juros, apenas demonstra o caráter “depois de nós o dilúvio” dessa pseudoterapia. O deficit persistente da balança comercial americana inunda o mundo de dólares depreciados. Pode-se “atrair” capitais estrangeiros para os Estados Unidos reduzindo as taxas de juros? Apostemos que os capitalistas japoneses e europeus reagirão à sua maneira. Outro dia tomamos conhecimento que na grande Los Angeles três quartos dos grandes edifícios já são propriedade estrangeira! Aí está onde conduz a política do Sr. Reagan. Ele tapa as brechas da fortaleza preenchendo-as com bananas de dinamite. Isso não livra o futuro de novas explosões. Mais do que nunca, a espiral de dívida vai se estender. A curto prazo, pode-se prever a redução do poder de compra dos consumidores, um novo passo para a recessão. Depois, são as dívidas do Terceiro Mundo, as dos Estados Unidos, as dos bancos e bolsas japonesas, as dos poderes públicos e a seguridade social na Europa, que começarão a degringolar. Toda a bola de neve pôs-se em movimento há mais de um ano. O resto é apenas uma questão de cronologia: crise generalizada em 1987 ou 1988!”
__
Ernest Mandel (1926-1995), de origem belga, foi um dos economistas marxistas mais importantes do século XX. O texto acima está publicado no site dedicado à sua memória:
http://www.ernestmandel.org/fr/ecrits/txt/1987/1929.htm
__
N.T. Émile Coué (1857-1926), psicólogo francês, inventou um novo método, o do estímulo através da au-sugestão consciente.
__
A crítica em perigo

Às vezes, somos levados a pensar que a academia é uma loja de bijuterias, cujas clientes se deliciam em ostentar os mesmos objetos. Até que uma delas troca de adereço e as outras passam a imitá-la, enquanto aguardam a eleição de um novo colar ou pulseira da vez.
O estruturalismo caiu de moda muito tarde. Foi substituído por novas ‘teorias’, entre elas a dos estudos culturais, tentativa de utilização de um sub-marxismo para interpretação de alguns fenômenos ditos ‘pós-modernos’: o escritor mestiço, a nacionalidade híbrida, o contista negreiro, a feminilidade desfeita.... Abandonada sem crítica, a teoria da moda é geralmente substituída por outra. Depois, passa a ser ‘esquecida’, como os arquivos do DOPS. E tudo recomeça, numa espécie de espiral de nosso universo esquizofrênico, regido pelo paradigma do esquecimento. Quem era ‘estruturalista” passa a ser seu crítico, sem qualquer constrangimento. Como aqueles que apoiaram a repressão e acabaram virando ‘democratas’.
Felizmente, tem havido algumas exceções. Exemplo: José Guilherme Merquior, um dos críticos ‘pensantes’ mais importantes do país. Enterrado pelo pensamento oficial durante três décadas, algumas de suas idéias – sobretudo a acerba crítica ao estruturalismo literário, contida no livro De Praga a Paris, editado em 1985 e traduzido no Brasil em 1991 – antecedem muitos críticos que hoje retomam sua linha de pensamento, inclusive em outros países.
É interessante, por exemplo, observar a admiração que ele – tido como de ‘direita’ – tinha por Walter Benjamin, considerado de filiação marxista, ao mesmo tempo em que voltou sua artilharia demolidora contra Roland Barthes, principal oráculo do Olimpo acadêmico.
Quais, para ele, as principais diferenças entre Benjamin, “exemplo extraordinário de crítico cultural e um dos primeiros ensaístas do Ocidente” e Roland Barthes? Em primeiro lugar, escreveu José Guilherme Merquior, Benjamin era uma mente “capaz de lidar com a literatura moderna” e seu horizonte abrangia escritores de várias origens, num largo leque que ia da Alemanha à Rússia, da Inglaterra à França. Barthes, por sua vez, era um ‘provinciano’, limitado ao mundo francês.
A segunda diferença: embora Benjamin tenha adotado “mais do que um elemento da ideologia do modernismo!”, nunca se restringiu à arte sem objeto, nem separou signo do significado. Ou seja, nunca “separou a literatura de seu revestimento histórico”.
É essa mesma crítica a que fez Merquior a Todorov – cuja auto-crítica surge este ano sob a forma de um livro medíocre, intitulado A literatura em perigo. Sobre Todorov registrou Merquior, em 1985: “Em todo caso, desejaríamos que seu apelo a um novo humanismo racional na crítica literária simpatizasse mais com as abordagens históricas e fosse menos depreciativo com o marxismo”.

__

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Márcio Moreira Alves
(para as novas gerações)

Há mais de 40 anos, um dos mais brilhantes e destemidos jornalistas brasileiros, Márcio Moreira Alves, recentemente falecido, escreveu o livro Torturadores e torturados, após ter investigado o processo repressivo desencadeado pelo Golpe de 64. Márcio – ou Marcito como era conhecido pelos mais próximos – não era comunista. Nascera de famílias da burguesia mineiro-carioca, mas logo se posicionou contra a ditadura militar, durante a qual as torturas e os ‘desaparecimentos’ foram moeda corrente. Desse pequeno texto do primeiro grande libelo da época contra as violações dos direitos humanos em nosso país podemos avaliar sua inteligência e sua coragem cívica:

"O processo das torturas é também o processo da sociedade brasileira. Quando mais intensas eram as notícias dos maus tratos infligidos aos que superpovoavam nossas prisões, uma senhora católica, possuidora do que se convenciona chamar de “boa educação” e, pessoalmente, bastante generosa, disse-me: “está na hora de taparmos os ouvidos, calarmos a boca e fecharmos os olhos e deixarmos que eles acabem com os comunistas”. Não percebia ela a indignidade de suas palavras, Mas, em uma frase, sintetizou o pensamento das classes dominantes, prontas a compactuar com atrocidades a fim de preservar a aparente paz em que vive e, sobretudo, os imensos privilégios e poder de que dispõe. Não creio que uma sociedade que traga em seu cerne a desumanidade tenha condições de sobreviver. Sua única possibilidade de regeneração — e esta possibilidade existe e nos dá esperanças no Brasil — é negativa: o isolamento completo face a sua própria juventude. A nova geração das elites brasileiras — elites culturais, embora também econômicas em virtude do sistema educacional antidemocrático que temos — deu e continua a dar reiteradas demonstrações de oposição à velha classe atualmente no poder."

___

terça-feira, 2 de junho de 2009


Miguel Torga passou 60 anos escrevendo seu Diário. No dia 3 de dezembro de 1935, em Vila Nova, anotou: "Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era."

__