sábado, 18 de junho de 2011


 
Sábado, no edifício Santo Albino

Alto do edifício Santo Albino, esquina da Guararapes com Dantas Barreto. Um escritório  com janelas que ainda podiam olhar o velho Recife. Ali, em certos sábados do início dos anos 60, íamos ao encontro de dois conhecidos advogados: Audálio Alves e Carlos Moreira. Não havia questões jurídicas a tratar. Naqueles dias os dois se metamorfoseavam em advogados da poesia, matéria que nada rende. À cidade não faltavam poetas. Mas poucos davam importância a jovens como nós, apenas saídos do curso secundário e cujas leituras poéticas limitavam-se às edições que a Livraria Editora Nacional da Rua da Imperatriz podia nos oferecer ou ao que nossos parcos recursos de estudantes nos permitiam adquirir.
Íamos pelas 10 horas da manhã, ouvir Carlos Moreira, mestre do soneto (“aquela tarde durou uma açucena”) discorrer sobre elementos de versificação, escutar Audálio Alves falar sobre a importância da poesia espanhola e abismar-nos com os poemas de García Lorca ou de Miguel Hernández, de quem nunca ouvíramos falar.  De Lorca conhecíamos alguns poemas (“Verde que te quiero verde”...). De Miguel Hernández tempos depois descobriria a poesia do combatente do Quinto Regimento Republicano, preso em Portugal, entregue pela polícia de Salazar à terrível Guardia Civil espanhola, em cujas mãos ele morreria tuberculoso, aos 32 anos, numa prisão de Alicante.
De vez em quando folheio o exemplar que Audálio me dedicou de seu Princípio áspero de uma canção sem terra – canto agrário, livro de um poeta dos despossuídos, dos sem terra, numa época em que ainda se jogava camponês em fornalha de engenho.
Os dois prefácios ao livro – um, de Gilberto Freyre; outro, de Mauro Mota – observam Canto agrário como uma “navio em busca de terra” (Gilberto Freyre) ou seu autor como um poeta metafórico (Mauro Mota). Contudo, na época, a poesia de Audálio – ao contrário da tendência dos louvadores do panteão pernambucano – situava-se numa busca de renovação não apenas formal, mas voltada para questões candentes que logo seriam dirimidas pelo golpe militar de 64.
Lembro Audálio a recitar o poema com todas as suas pausas:

“Digo ao mar que tenho sede
e aos montes que tenho fome.
Mas, se ali murmura o verde
(só murmúrios),
por aqui basta distância
(nem murmúrios)
e suave  o verde some.
Digo sede e digo fome,
digo paz – e essa palavra
roe a linha de meus lábios.”

Fecho o livro a penso que um dia o povo do lugar que antes foi um ‘verde estendal’ talvez reconheça Audálio Alves como um de seus grandes poetas.
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Ilustração de Portinari
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quarta-feira, 15 de junho de 2011



O gênio excluido 

Na França, país das polêmicas culturais, abriu-se mais uma discussão em torno de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), certamente o escritor francês mais controvertido. O ministro da cultura excluiu recentemente seu nome da lista de celebrações nacionais para o ano de 2011, na qual o autor de Viagem ao fim da noite havia sido inscrito após votação feita por personalidades escolhidas pelo próprio Ministério. Antissemita e acusado de ter colaborado com os nazistas durante a ocupação da França, na Segunda Guerra Mundial, a influência de Cèline sobre a literatura francesa do século XX só é comparável à exercida pelos escritos de Marcel Proust. Dotados de uma linguagem singular, ancorada na oralidade e valendo-se de expressões da gíria corrente, seus romances carregados de pessimismo – em particular o Voyage au bout de la nuit – trouxeram, paradoxalmente,  um grande aceno de novidade à literatura francesa da primeira metade do século passado. Numa de suas entrevistas, já totalmente marginalizado e exercendo uma medicina junto aos pobres de seu bairro, Cèline declarou que é o estilo o que diferencia um grande escritor e que qualquer um é capaz de contar histórias, mas apenas dois ou três conseguem escapar à mediocridade de sua época. Cèline foi um deles.
Tendo que escolher entre uma escrita genial e a exclusão de uma personalidade chocante, o ministro da cultura da França optou por essa última alternativa. Num país que negociou a rendição com o regime nazista, assuntos dessa natureza serão sempre um tabu. Mesmo que com isso sofra a mais alta literatura em língua francesa.

segunda-feira, 6 de junho de 2011


Antonio Torres, o escritor e seu ofício

Luis Nassif

Coluna Econômica - 06/06/2011 

O grande escritor é ele e seu ofício solitário, ele com ele. Não ambiciona riqueza ou poder. Sua ambição é o reconhecimento dos leitores e dos iguais, os demais escritores. Muitos escrevem pensando apenas no reconhecimento posterior; outros ambicionam o reconhecimento imediato. Mas seu mote, sua seiva vital é o reconhecimento de seus pares.
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Um grande escritor não nasce, é construído ao longo de décadas e de livros, de personagens que cria, de tramas que tece, de sentimentos que explora, na solidão intermitente de seu quarto, raras vezes nos salões dos poderosos. Explora novas formas de conhecimento, a atualização permanente da leitura e da análise de pessoas e circunstâncias.
Não busca a popularidade fácil dos jornalistas, a exploração do factual, do imediato, o atendimento da catarse dos leitores. O grande escritor ambiciona a eternidade. Para os de família quatrocentona, a eternidade pode ser um mausoléu no Cemitério da Consolidação; para os muitos ricos letrados, uma fundação que leve seu nome; para o provincianismo brasileiro, um nome de rua.
Para o grande escritor, deveria ser a Academia Brasileira de Letras (ABL). Mas não é.
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A ABL, a casa de Machado de Assis, que deveria ser a guardiã implacável dos valores da literatura, a defensora intransigente da meritocracia, a defensora dos escritores, o selo de qualidade, o passaporte final para a posteridade, é uma casa menor, em alguns momentos parecendo mais uma cloaca de fazenda do que um lugar de luzes e de letras.
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Ao preterir o escritor Antônio Torres em favor do jornalista Merval Pereira, a ABL demonstrou a pequenez não propriamente dela, mas de uma certa elite superficial brasileira, provinciana, atrasada.
De pouco adiantou o fato de que os livros de Torres ajudaram o Brasil a ser mais conhecido por leitores da Itália, Argentina, México, Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Portugal, Bélgica, Holanda, Israel, Bulgária. Ou o fato de dois livros seus – Um táxi para Viena D’Áustria e Essa Terra - traduzidos na França, terem levado o governo francês, em 1999, a lhe conferir o título de "Cavaleiro das Artes e das Letras”.
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Merval tem a visibilidade e o poder proporcionados pela Rede Globo. Tem moeda de troca – o espaço na Globo, podendo abastecer o ego de seus pares e as demandas da ABL. Poderia até ganhar prêmios jornalísticos, jamais a maior condecoração da literatura brasileira.
Tem apenas dois livros, um de 1979, feito a quatro mãos, outro mais recente, mera compilação de artigos que escreve para o jornal “O Globo”.
Mas representa poder – no caso, a mídia -, assim como, em outros tempos, o poder era o general Lyra Tavares, Getúlio Vargas, Roberto Marinho, ao quais também se curvou a ABL.
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De Merval, duas declarações de endosso. Da indescritível Nelida Piñon, enaltecendo seu... cavalheirismo. E a informação de que, dos acadêmicos, conhece apenas João Ubaldo Ribeiro – colunista de “O Globo”.

Obs.: Merece reflexão a matéria de Luis Nassif acima reproduzida, com a qual concordamos. Faria apenas uma observação: Nelida Piñon foi uma das raras escritoras brasileiras que apoiou o golpe militar de 64...