sábado, 30 de maio de 2009


Joaquim Cardozo e o Recife

Gilberto Freyre

O recifense verdadeiramente devoto do Recife sabe que entre os santos desse seu culto está um mártir: Joaquim Cardozo. O Joaquim Cardozo que se antecipou em ver o Recife sob a ameaça de ser crucificado na “cruz das avenidas novas”; e desde então vem ele próprio sofrendo a dor dessa crucificação de sua cidade materna.
Nenhum poeta mais profundamente identificado com o Recife de ruas estreitas e de sobrados característicos do que ele: toda avenida larga que aqui se vem abrindo sobre as ruínas desses bons e honestos sobrados e todo arranha-céu inexpressivo que aqui os vem desajeitadamente substituindo nos últimos trinta anos, são golpes a que Joaquim Cardozo só vem sobrevivendo fazendo de suas dores poemas. Goetheanamente, portanto...
São dores de santo-poeta-mártir, as suas. Outros exaltem os progressos recifenses; louvem as pontes novas; as avenidas novas; os novos arranha-céus. Ele chegará ao fim dos seus dias cantando outro canto: saudoso de valores que faziam do seu Recife uma cidade única e que destruídos o vão deixando reduzido a um tristonho ex-Recife.
A poesia mais expressiva desse poeta autêntico – um dos poetas máximos da sua geração brasileira – é quase toda ela marcada pela dor de quem vem perdendo no passado desfeito de sua cidade não relíquias dignas apenas de museus, porém valores merecedores de ser renovados, ampliados, desenvolvidos; e nunca devastados com violência simplista e de todo substituídos com estrangeirices espúrias.
Uma poesia não de saudosismo piegas, mas de saudade viril.
Tristes dos pobres diabos que confundem tal saudosismo com essa espécie de saudade; e ostentam sua confusão em discursos com pretensões a “progressistas”.
Eles passam depressa. Seus discursos murcham nos jornais do dia seguinte. Enquanto o clamor de Joaquim Cardozo pelo Recife autêntico, genuíno, que vem sendo tão brutalmente crucificado “na cruz das avenidas novas”, este é um clamor impregnado da melhor poesia: já está nas antologias e vibrará enquanto existir a língua portuguesa.

GILBERTO FREYRE, in Jornal do Commercio, Recife, 1967.
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Que relação pode existir entre a poesia e o lixo do Recife?
No mínimo, evocar o famoso poema de Antonio Machado (1875-1939):

Las moscas

Antonio Machado

Vosotras, las familiares,

inevitables golosas,
vosotras, moscas vulgares,
me evocáis todas las cosas.


¡Oh viejas moscas voraces
como abejas en abril,
viejas moscas pertinaces
sobre mi calva infantil!


¡Moscas del primer hastío
en el salón familiar,
las claras tardes de estío
en que yo empecé a soñar!


Y en la aborrecida escuela,
raudas moscas divertidas,
perseguidas
por amor de lo que vuela,


—que todo es volar—, sonora
rebotando en los cristales
en los días otoñales...
Moscas de todas las horas,


de infancia y adolescencia,
de mi juventud dorada;
de esta segunda inocencia,
que da en no creer en nada,


de siempre... Moscas vulgares,
que de puro familiares
no tendréis digno cantor:
yo sé que os habéis posado


sobre el juguete encantado,
sobre el librote cerrado,
sobre la carta de amor,
sobre los párpados yertos
de los muertos.


Inevitables golosas,
que ni labráis como abejas,
ni brilláis cual mariposas;
pequeñitas, revoltosas,
vosotras, amigas viejas,
me evocáis todas las cosas.
...

sábado, 16 de maio de 2009


Philip Larkin (1922-1985)

Why did I dream of you last night?

Philip Larkin

Why did I dream of you last night?
Now morning is pushing back hair with grey light
Memories strike home, like slaps in the face;
Raised on elbow, I stare at the pale fog
Beyond the window.

So many things I had thought forgotten
Return to my mind with stranger pain:
- Like letters that arrive addressed to someone
Who left the house so many years ago.


Por que sonhei com você esta noite?

Por que sonhei com você esta noite?
Agora a manhã penteia a cabeleireira com cinzenta luz
E lembranças batem à porta, como bofetadas no rosto;
De bruços, fito a pálida bruma
Por trás da janela.

Quantas coisas eu julgava esquecidas
e à mente retornam com estranha dor:
como cartas enviadas a alguém
que há muito anos se mudou.
...

sexta-feira, 15 de maio de 2009

FRACTALES

Everardo Norões

Por la inmersión
de las sombras
calculo
el itinerario de la luz.
Mido los contornos de nuestras ruinas
en la matemática particular
de las desesperaciones.


Abro la ventana
de la página del sueño.
Deletreo, despacio
el Aywu Rapitá:
el ser del ser de la palabra,
(flor pronunciada
entre las estrellas.)
La noche
se derrumba sobre las tejas
en la explosión de un meteoro.
Cuento esquirlas,
recompongo parábolas:
un mínimo de lo que soy
recuerda las fronteras
del Universo.


FLAMBOYANT

Everardo Norões

reviento
el corazón del verde
en esta tarde
es cuando el sol florece
jaboticabas al pie
maduro color del ojo
divino
es un color indefinido
hálito que no se describe
sólo soy
el encarnado

reviento
el corazón del verde
y sangro
al ritmo regular
y persistente de la lluvia
entonces
discurro lo que pasa
sobre esta mancha
que ensucia
la avaricia de los días

soy
tan sólo la herida
en lo alto de una tarde
una corona de espinos
en el silencio
.
Traducción al español de Mario Martínez Sobrino
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Mario Martínez Sobrino (La Habana, 1931). Poeta, traductor y ensayista. Durante más de veinte años ejerció la diplomacia. Ha publicado los siguientes poemarios: Poesía de un año treinta y cinco (1968), Cuatro leguas a La Habana (1978), Tarde, noche, otro día (1982), Mientras (1992), Dueño del terror (1992), Largo verano (México, 1995), Cabellera de un relámpago (1998), Helechos (2001), y Figuras de tormenta (2004). A este último le fue otorgado el Premio Nicolás Guillén de ese año. Compiló, tradujo y publicó en 2005 una antología del poeta brasileño Ferreira Gullar, titulada Todos te buscan. Poemas suyos han sido traducidos al alemán, francés, portugués, inglés, ruso, serbio-croata y húngaro, y han sido incluidos en antologías de Cuba y del exterior. Colabora en revistas nacionales y extranjeras. Actualmente tiene en preparación el poemario “Aguas varias”.
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Nota del traductor: jaboticaba, Myrciaria cauliflor o Myrtus cauliflora.

quinta-feira, 14 de maio de 2009



Quem é nosso Andreotti?

Talvez não chegue às telas brasileiras o filme Il Divo, do diretor italiano Paolo Sorrentino. Será uma pena. O filme retrata de forma sarcástica o percurso político de Giulio Andreotti, o ex-primeiro ministro italiano, acusado de ligações com a Máfia. A película recebeu o Prêmio do Júri no Festival de Cannes do ano passado e foi também premiado no Festival de Toronto. É magistral o desempenho do ator Toni Servillo no papel do político democrata cristão italiano, que desde 1946 ocupou as mais altas funções nos vários governos da Itália. A semelhança do comportamento de Giulio Andreotti com certo político brasileiro merece registro. Descubram quem...
...

quarta-feira, 13 de maio de 2009


Paul-Louis Rossi: inscape e descoberta

Fazia frio e placas de gelo brilhavam ao sol nos tanques do Jardim de Luxemburgo. No Café de Luxemburgo, eu e Sônia desfrutamos uma inteira tarde (ou tarde inteira) a companhia do poeta francês Paul-Louis Rossi, que havíamos conhecido em Nantes. Intelectual importante de sua geração, para ele a poesia não se restringe aos livros: invade a existência, move-se numa paisagem interior, nuvem ou onda, a cada inscape, como ele define nesse texto, a partir de uma idéia do poeta inglês Gerard Manley Hopkins:


Inscapes


Paul-Louis Rossi
Traduz-se inscape, em francês, como Paisagem interior. Essa interpretação, satisfatória, não revela a complexidade da noção de inscape, elaborada por Gerard Manley Hopkins, poeta de língua inglesa.
Embora pouco traduzido, e quase desconhecido na França, considero Hopkins um dos maiores poetas da lírica contemporânea. Nasceu em 28 de julho de 1844, em Stratford, na Inglaterra. Menino, freqüentou a Gramar School de Sir Robert Cholmondesley, em Highgate, onde também estiveram Coleridge, De Quincey e Keats.
Em 1866, Hopkins abandonou a religião anglicana e se converteu ao catolicismo. Na Inglaterra vitoriana essa conversão equivalia a um suicídio social. Foi renegado por seus amigos, e mesmo pela própria família. Ingressou na ordem dos Jesuítas, em Roehampton, em 1868, no País de Gales. E queimou seus poemas de juventude.
Foi em 1872, na ilha de Man, que descobriu Duns Scot, aquele que foi cognominado o Doutor Sutil – teólogo da escola franciscana, no século XIII, que polemizou com a doutrina de Tomás de Aquino – e reconciliou Hopkins consigo mesmo, com o mundo sensível, a arte, a poesia.
O teólogo escocês pensava que a divindade encontrava-se em cada elemento do universo, as plantas, os rochedos, as nuvens, como na religião dos celtas. Scot escreveu: a revelação tem no universo um papel prático; ela suplementa a razão lá onde ela não pode chegar.
A partir da filosofia de Duns Scot, Hopkins construiu a noção de Instress, que seria necessário explicar como:

O golpe que atinge o observador pela força intrínseca contida em todo objeto que lhe dá força e vida...

Ele toma a nuvem como exemplo para explicar essa noção:

A forma de uma nuvem é impressa: instressed pelo vento...

Para reencontrar a noção de inscape é preciso reter essa imagem da nuvem que se compõe e se decompõe ao sopro do vento. Ele anotou em seu diário:

Esta manhã, inscape
de nuvens...

É preciso admitir que essa imagem da nuvem, inscrita na visão é, entretanto, fugidia. O inscape não se perpetua, surge para alguém susceptível de reconhecê-la na sua integridade, na sua originalidade e beleza. Mas desaparece ao menor vento.
A própria palavra inscape é um neologismo forjado por Hopkins, a partir de landscape. Portanto, paisagem interior, motivo íntimo, esquema do intrínseco:

O instante apreendido na sua própria forma...

Como John Ruskin e William Turner, Hopkins exprime uma noção moderna da estrutura totalizante de uma paisagem, da forma de uma nuvem que se abisma sobre uma ribeira.
Gerard Manley Hopkins faleceu em 8 de junho de 1889, no seu retiro de Tullabeg. Está enterrado no Jesuit Plot de Glanevin, na Irlanda. Era obcecado pela miséria material e moral do povo. Escreveu a Robert Bridges, em 1871:

Temo, no entanto, que estejamos à beira de alguma grande revolução. É terrível dizer, mas, num certo sentido, sou comunista...

Essa ida e vinda na existência e o laboratório do escritor inglês nos permite escolher o título de Paysage Intérieur – inscape – com a intenção de criar para os visitantes uma escapatória, uma visão, um universo mental, uma perspectiva onde eles possam se reconhecer.
Desejo que cada um dos visitantes retenha o que lhe convém ao espírito e ao seu gosto. A literatura é como a onda, ou a nuvem, que passam. Cada onda apaga um pouco a marca da precedente, idêntica, embora diferente. Cada nuvem traz ao céu sua própria cor. É desejável que cada visitante imagine e leia nesse movimento a realidade e a forma de seu desejo.
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In Paul-Louis Rossi: Paysage intérieur; inscape. Nantes: Bibliothèque Municipale de Nantes/éditions joca seria. 2004.
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As corujas

Moreira Campos

Ele conversa muito consigo mesmo, repete-se, os olhos no chão e metido no dólmã de brim listado, os pés redondos nas alpercatas. Resmunga, insistente. Fecha as janelas do velho necrotério. Apanha os pedaços de lona e, com eles, cobre os mortos sobre as lousas. Deixa-lhes apenas os pés de fora. A mulher sem chinelas, com sangue coagulado entre os dedos abertos; as grandes botas gastas e de cadarços do alemão andarilho, que amanheceu morto no oitão do armazém da praia, onde se alojara: o enorme saco e o livro de impressões, folheado por muitos dedos, foram recolhidos à delegacia. É preciso cobrir os mortos, proteger-lhes as cabeças. As corujas descem pela clarabóia. Têm vôo brando, impressentido, num cair de asas leves, como num sopro de morte. De repente, dá-se conta de sua presença, das asas de pluma sem ruído. Alteiam-se e pousam sobre o peito dos mortos, arranhando-lhes os olhos parados, que fulgem na noite, divididos ao meio.
- Xô, praga!
Os pedaços de lona ficam dobrados a um canto da sala escura, e ele os puxa sempre, curtos, deixando à mostra os pés inertes. Indispensável fazê-lo; depois fechar a luz triste da lâmpada que desce pelo fio longo com teias de aranha. O facho da lâmpada de pilhas ainda percorre o teto de travejamento antigo. Crescem e oscilam as sombras: as botas de cadarço do alemão contra a parede. – umas botas de muitas viagens. As corujas rasgam mortalha a noite toda na copa das altas árvores do terreno. O facho de luz tenta a densidade das folhas, corre cinzentos telhados, passa pela torre da capela, detém-se, ao longe, na janela de vidro do nosocômio. Em qualquer parte da noite, estarão as corujas. Elas rasgam mortalhas, agourentas, cortam o silêncio, sacudindo a vigília dos doentes. Recolhem de dia, ao sótão da capela, onde pegam os ratos, que guincham nas suas garras. Necessário subir ao sótão desfazer-lhes os ninhos. Falará com irmã Jacinta, diretora do nosocômio, quando ela vier para a ala dos indigentes, ativa, tilintando as chaves no bolso do hábito. Ela mandará que Antero jardineiro trepe ao sótão. Ele é moço e divertido. Torcerá o pescoço das corujas, com os cabelos cheios de aranha, e as atirará ao pátio do alto da torre, pilheriando com as enfermeiras. É preciso exterminar as malditas, que rasgam mortalha na noite, enquanto o facho de luz as procura na sombra densa das árvores:
- Xô, praga!
Resmunga, conversa sozinho, repete-se. Torna a experimentar as trancas das janelas, teima em ajeitar os pedaços de lona, que modelam saliências rígidas. O pedaço de lona do alemão ficou curto como uma camisa: tem presença apenas as botas. Resmunga. Se pudesse, ele próprio poria uma tela de arame na clarabóia. Já falou a Dr. Joca, que ele trata por você porque foram criados juntos, e um xinga o outro. O bisturi do Joca corta sem pressa, profissionalmente. Luvas ensangüentadas, bigode branco amarelecido pelo fumo, ele apanha o cigarro com a boca no cinzeiro sobre o peitoril da janela.
- Leva o balde.
O velho o recolhe, e conversa consigo mesmo, o corpo atarracado mal contido no dólmã de mescla.
Quando o homem que chegou do interior e se hospedou no quarto da pensão veio fazer o velório ao corpo descarnado do filho, ele lhe deu a lâmpada de pilhas e o advertiu para as corujas. Elas desciam pela clarabóia, mesmo com a luz da lâmpada. Era preciso manter as velas acesas nos castiçais. Só assim as desgraçadas não vinham: temiam queimar as asas nas chamas. Ficavam rasgando mortalha no alto das velhas árvores ou na torre da capela. Sem a presença das velas, elas surgem sempre, impressentidas, como num sopro de morte: alteiam-se leves, pousam sobre o peito dos mortos e com o bico arranham-lhes os olhos que fulgem parados e indefesos na noite.
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In MOREIRA CAMPOS, J.M. Contos escolhidos. Fortaleza: Edições UFC, 1984.
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Contos negreiros

É tudo ‘déjà vu’. O africano negro de Jean Rouch entrevista a parisiense nas escadarias do Trocadero. Pede que ela lhe mostre os dentes, fazendo perguntas à passante francesa, branca, num exercício de etnografia às avessas. As histórias de Contos negreiros, de Marcelino Freire (São Paulo: Record, 2005) também parecem esquetes do início dos anos 60, tempo em que o teatro buscava levar às massas alguma mensagem política. Tudo muito rápido, ‘pedagógico’, tratado pela terapia do choque. Mas o que sobra da linguagem, do literário? O discurso do narrador não consegue convencer e o difícil salto entre a linguagem ordinária e a transcendente resulta num grande escorregão. Estamos longe de um Caio Fernando Abreu ou de um Jean Genet, para os quais o exercício de dissecar o lado negro do humano não tinha limites. Mas o que escreviam se revestia de certa aura. A arte moderna há muito nos deixou uma certeza: o feio e o repulsivo para serem transfigurados exigem um certo gênio. O tipo de literatura a que se filia Contos negreiros é certamente o mais difícil de ser praticado, porque não permite meio termo. As resenhas podem amparar o movimento das editoras. Mas o que fica da literatura? Só o tempo dirá...


Letras

Conrado Falbo

não caminho
por altas literaturas
quando escrevo

só posso
falar
do que conheço

cotidiano miúdo
insignificâncias
de estimação

apenas
perto do chão
estou à vontade
para minhas
rasteiras
palavras.

quando escrevo
não subverto:
subverso.

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Conrado Falbo, pernambucano, é uma voz da nova geração de poetas brasileiros.
A ilustração é do pintor francês Alfred Manessier.
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O sol se põe em São Paulo...

Comecei o primeiro capítulo de O sol se põe em São Paulo, de Bernardo Carvalho (Companhia das Letras) com boa vontade e aguardei um prosseguimento interessante. Sobretudo quando, no fecho do capítulo, o narrador nota “uma pequena medalha onde estavam gravados dois ideogramas mínimos, que o movimento natural do braço a arregaçar ligeiramente o punho de seda descobriu”. Com uma frase assim pensei que o romance se armaria como Italo Calvino escreveu, idealizando uma imagem carregada de significado, numa das etapas do processo imaginativo “que parte da imagem à expressão verbal”. Nada disso acontece. Logo no segundo capítulo penetramos numa espécie de roteiro digno de novela das 8, ao qual não faltam ingredientes de um pastiche japonês: as freqüentes alusões ao suicídio, incidentes que tentam lembrar Mishima (mas cujos personagens não têm, nem de longe, a força daqueles do romancista japonês), cansativas menções de ruas de cidades japonesas, descrições de templos, alusões ao teatro nipônico e, óbvio, referências ao Genji Monogatari, monumento fundador da literatura japonesa. (Diga-se de passagem que o livro foi publicado em plena comemoração da emigração japonesa no Brasil.)
Diremos do livro o que Ortega y Gasset comentou sobre uma certa arte nova: “Das obras jovens procurei extrair sua intenção, que é o substancioso, e não me preocupei com a sua realização. Quem sabe o que dará esse nascente estilo? A empresa que acomete é fabulosa – quer criar do nada. Eu espero que mais adiante se contente com menos e acerte mais”.

terça-feira, 12 de maio de 2009


Uma estética distante

Encontro com o artista plástico senegalês Mohamadou Ndoye, cujo universo pictórico retrata o emaranhado de ruas da periferia de Dacar, Senegal, onde circulam automóveis estranhos, paisagens em que se misturam antenas de televisão, roupas dependuradas em cordas, casas de papelão e areia a varrer vidas e objetos. Seu desenho animado Train Train Medina foi premiado em vários festivais. Preocupação: mesmo na pobreza é possível o aprendizado de uma estética. Dacar e Recife, face a face e quão distantes! Penso no Recife do turismo brega, das ruas afogadas em anúncios, dos artistas fechados em seus ateliês, das torres cada vez mais altas despejando suas sombras sobre o lixo das favelas, nas caixas de som ferindo nossos tímpanos, nas ruas onde o caminhar transformou-se em desafio. E nenhum artista para expressar nossa tragédia urbana...

De Minha formação no Recife

Gilberto Amado

Nos anos de maturidade, minha posição diante de Rui Barbosa sofreu os mesmos altos e baixos. Destes, o ponto mais fundo foi o discurso no enterro de Machado de Assis no qual, sem necessidade nenhuma, Rui Barbosa falou sobre a “‘bondade” do autor de Quincas Borba. Por que, meu Deus! atribuir uma virtude não provada ao autor de uma obra que se uma característica era a de não crer na bondade humana? A gratuidade de manifestações tais me fazia sofrer. Pensei, a propósito deste discurso, em Capitu que, ainda meninota, Machado de Assis pintava como uma “‘pirata”, e nos malucos enfermos de quem o artista cru e cético sorria. Há certas imprecisões que fazem mal. Machado de Assis não era ruim; não devia ser. Mas era a bondade traço a ser assinalado no homem seco e discreto de que saíram tantas obras em que tudo se pode ver menos a bondade? Foi esta a última raiva que me deu o maior dos brasileiros.

in Minha formação no Recife. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. 1955.
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Pequeno comentário

Lendo os comentários de Julien Gracq sobre Proust penso na obra de Pedro Nava, na qual a memória se impõe sobre a ficção de forma tão poderosa. E me pergunto em que medida essa sede de beber na fonte das lembranças diante do limbo da criação não teria sido, em última instância, um dos motivos do suicídio do escritor mineiro. De fato, a ele faltava esse ‘tremblement d’avenir’, o tremor de futuro, de que fala Gracq. É verdade que ao ler Baú de ossos sentimos o prazer da crônica a nos revelar detalhes e a ressuscitar pequenos prazeres. Mas sentimos também que lhe falta a faísca que lavra o incêndio dos grandes escritores...

Vida aos árabes!

Aaron Shabtai

Há dois dias em Rafi’ah
nove árabes foram mortos;
ontem, outros seis
foram mortos em Hebron.
E hoje, apenas dois.
No ano passado,
enquanto manifestávamos
ao sair da Rua Shenkin
um homem numa moto
gritou para nós:
“Morte aos árabes!”
Na esquina da Rua do Trabalho,
diante do Mercado Bezalel
e na esquina de Brograshov:
“Morte aos árabes!”
Durante todo um ano
esse poema ficou no chão,
sobre a calçada
da Rua King George.
Hoje, eu o apanho e componho
seu verso final:
“Vida aos árabes!”
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Aaron Shabtai é considerado o maior poeta israelense. Traduzi o poema do francês. No site, a seguir, ele pode ser escutado em hebreu, recitado pelo autor.


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quinta-feira, 7 de maio de 2009


Hélio Pellegrino

De conversa com Fábio Andrade, recordamos o belíssimo livro de Hélio Pellegrino, Minérios domados, publicado pela Rocco, em 1993. Nascido em 1924 e falecido em 1988, psicanalista, escritor, Hélio Pellegrino não pode cair no estranho “paradigma do esquecimento” que rege a história brasileira. Catei dois diamantes de sua lavra: um poema e o trecho de uma entrevista com Clarice Lispector, do livro dela intitulado De corpo inteiro, também da Rocco, editado em 1999.

La Vida es Sueño


A pedra
a pedra como o fogo
com suas resinas e ramas
a pedra como o fogo
é um sonho
de pálpebras abertas.


O sonho é quando
no veludo íntimo da noite
fogo e pedra se sonham:


— as pálpebras cerradas.


Um homem chamado Hélio Pellegrino


- Diga qual é a sua fórmula de vida. Eu queria imitar.


-Há, no Diário íntimo de Kafka, um pequeno trecho ao qual gostaria de permanecer para sempre fiel, fazendo dele a minha fórmula de vida: "Há dois pecados humanos capitais dos quais todos os outros decorrem: a impaciência e a preguiça. Por causa de sua impaciência, foi o homem expulso do paraíso. Por causa de sua preguiça, não retornou a ele. Talvez não exista senão um pecado capital, a impaciência. Por causa da impaciência, foi o homem expulso, por causa dela não consegue voltar. Tenhamos paciência - uma longa, interminável paciência - e tudo nos será dado por acréscimo"

- Por que você escreve esporadicamente e não assume de uma vez por todas o seu papel de escritor e criador?


Poderia driblar essa pergunta, respondendo com uma meia-verdade - escrevo menos esporadicamente do que publico. Mas esta seria uma saída falsa, e não quero ser falso. Escrever e criar constituem, para mim, uma experiência radical de nascimento. A gente, no fundo, tem medo de nascer, pois nascer é saber-se vivo e - como tal - exposto à morte. Escrevo mais do devo para - quem sabe? - manter a ilusão de que tenho um tempo longo pela frente. A meu favor, posso dizer a você que, com freqüência, agarro-me pelas orelhas e me ponho ao trabalho. Há umas coisas valiosas nas quais acredito, com muita força. Preciso dizê-las e vou dizê-las.


- Hélio, diga-me agora, qual é a coisa mais importante do mundo?


-A coisa mais importante do mundo é a possibilidade de ser-com-o-outro, na calma e intensa mutalidade do amor. O Outro é o que importa, antes e acima de tudo. Por mediação dele. Na medida em que o recebo em sua graça, conquisto para a mim a graça de existir. É esta fonte da verdadeira generosidade e do entusiasmo - Deus comigo.O amor genuíno ao Outro me leva à intuição do todo e me compele à luta pela justiça e pela transformação do mundo.


- Que é amor?


Amor é surpresa, susto esplêndido - descoberta do mundo. Amor é dom, demasia, presente. Dou-me ao Outro e, aberto à sua alteridade, por mediação dele, recebo dele o dom de mim, a graça de existir, por ter-me dado.


- Helio, você é analista e me conhece. Diga-me sem elogios - quem sou eu, já que você me disse quem é você...


-Você, Clarice, é uma pessoa com uma dramática vocação de integridade e totalidade. Você busca, apaixonadamente, o seu self... e esta tarefa a consome e faz sofrer. Você procura casar, dentro de você, luz e sombra, dia e noite, sol e lua...
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domingo, 3 de maio de 2009


Geração 60

Sérgio Castro Pinto

(a Carlos Aranha e Walter Galvão)

a carta branca do montilla
não era de alforria.

o papagaio era calado.

o cuba-libre nos prendia.

e em barris de carvalho
o tempo envilecia.
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Poema antológico, do poeta paraibano Sérgio Castro Pinto (Domicílio em trânsito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983).
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sexta-feira, 1 de maio de 2009


John o inglês disse

John o inglês disse
gosto da palavra bruma
turner turva bruma
o acento amargo sob
o chicote de sol desse verão
no alto mundo das taquaras
som carmesim de uma estação
de trem ou trovão
contido num som de órgão
de Bach
gosto da palavra bruma
núcleo obscuro da saudade
I like it
álacre é o aberto
bruma o fechado
o roxo de um deus crucificado
nas santas semanas da paixão
bronze zen a retinir
sozinho
*
A ilustração é colagem de um quadro do pintor inglês William Turner e fotografia dos altos de Taquaritinga.