sábado, 27 de outubro de 2012






Aqui jaz a biblioteca de Álvaro Lins

Quando todo mundo alardeia a chegada do anjo do progresso, uma velha biblioteca incomoda: a do escritor Álvaro Lins. Há anos ela vive relegada às prateleiras do atraso, na cidade onde nasceu há cem anos, Caruaru. Uma biblioteca que acabou por se transformar na metáfora de seu próprio dono. De fato, poucos intelectuais brasileiros pagaram tão caro por dizer tudo e por não temer confrontos quando a palavra destoava dos acontecimentos. Tanto na escrita, quanto na diplomacia, ele foi assim. Severo no avaliar escritores consagrados, Álvaro Lins não hesitou a atitudes como a de entregar o cargo de embaixador em Portugal, naquela hora em que os compromissos do governo brasileiro com a ditadura salazarista passaram a ferir suas convicções. O mesmo faria, anos depois, o escritor Octavio Paz, ao renunciar ao posto de embaixador na Índia, após o episódio conhecido como o massacre da Praça Tlatelolco. Não tivessem deixado uma obra importante os dois certamente teriam sido relegados pelos registros oficiais, ‘enterrados’ como a biblioteca de Álvaro Lins.
Acontece que os objetos às vezes dizem melhor do que a fala de seus próprios donos. Pois a leitura da História nem sempre é feita pelos livros, que costumam deformar e mistificar gente e acontecimentos. Objetos podem desvelar a realidade, como as substâncias químicas revelam fotografias. Ou como a arqueologia, que precisa cavar fundo, esmiuçar detritos, pedregulhos, para encontrar a flecha, o cadáver, o simulacro.
Que conversas, anotações mantêm entre suas páginas aqueles livros do escritor de Os mortos de sobrecasaca? Que comentários sobre o que seguia pelo Mundo? Que rabiscos sobre frases destoantes de algum escritor em busca da glória literária? Quem dentre os pares teria infringido promessas, colaborado com descalabros, foram ali observados pelo cru e implacável registro de um dos críticos literários mais importantes da América Latina?
Não existe acaso para o esquecimento. Nossa história é como álbum, para o qual recolhemos as figuras que iremos colar para suprir a memória, quando esta não mais responder ao chamado do afeto.
Uma biblioteca diz muita coisa; por isso, às vezes, precisa ser torturada, destruída, esquecida. Seus livros podem ser sequestrados, entregues ao mofo, ao descaso. Depois, deve ser transportada de lugar a lugar, como subversivo, para o qual nunca existirá ‘comissão da verdade’. Apenas ficará à espera de alguém que, finalmente, venha colar à porta do último sótão, a placa com o dizer como este: “Aqui jaz a biblioteca de Álvaro Lins”.