quinta-feira, 19 de março de 2009



Em dezembro de 1985, o poeta Gerardo Melo Mourão tomou a iniciativa de publicar um número do Caderno Rio Arte (ano I, nº 4), do qual era diretor, em comemoração aos 100 anos de nascimento do poeta Ezra Pound. Publicação rara, nela um artigo assinado por Lawrence W. Chisolm: Fenollosa, Pound e Cosmopolios, retrata o extraordinário companheiro de Pound :


Fenollosa, Pound e Cosmopolios

Lawrence W. Chisolm

A vida de Ernest Fenollosa foi, por excelência, o romance da erudição moderna. Esta afirmação de Pound, uma generalização típica, é perfeitamente válida aqui. Apesar de que Pound só conhecia na época as grandes linhas da carreira de Fenollosa, pesquisas posteriores confirmaram esta opinião. Fenollosa, no Japão de 1880, teve oportunidades realmente extraordinárias: o encontro de duas grandes culturas abria possibilidades que se pode qualificar de românticas. Ele começou por ser o primeiro professor de filosofia ocidental em Tóquio, depois se tornou Comissário Imperial das Belas Artes. Ele teve a sorte de explorar a história da civilização sino-japonesa como um imenso terreno baldio (os ocidentais a ignoravam) e de construir sua próprias teorias sobre seu desenvolvimento. Ele teve que auxiliar-se de uma erudição japonesa tradicional ainda longe do conceito histórico de evolução, mas sua autoridade de professor ocidental conduzindo uma renovação da arte nacional, lhe permitiu um acesso privilegiado às obras de arte. Só durou um curto período, do qual se aproveitou. Seu trabalho o obrigava a substituir toda uma equipe de especialistas. Foi arqueólogo, perito, pintor, crítico, professor, poeta, cantor, historiador – viveu os sonhos de uma dúzia de sábios com apenas trinta anos. Só se pode comparar tal aventura à descoberta de Tróia por Heinrich Schliemann, ou à redescoberta da escultura grega por Winckelmann. (Um historiador japonês chamou Fenollosa de Winckelmann do Japão.) Suas expedições não tiveram nenhum eco no Ocidente, pois sua admiração pelas civilizações ia de encontro a um etnocentrismo muito poderoso na época. Fenollosa foi então um personagem célebre no Japão dos Meiji, mas ficou quase desconhecido no Oeste e morreu numa quase obscuridade e a parte mais importante de sua obra só foi publicada depois de sua morte. Trabalhou toda sua vida para um renascimento artístico no Japão e nos Estados Unidos; até obteve alguns resultados, mas sua visão de uma civilização mundial em plena evolução se revelou prematura. O entusiasmo de Pound foi ainda aumentado pelo prazer de descobrir um gênio desconhecido, como ele, profeta americano ignorado pelo seu país e por seus contemporâneos, como ele, prometido à imortalidade – analogia asseguradora e puro conto de fadas.
A vida pessoal de Fenollosa e suas origens familiares nos impressionam igualmente pelos seus lados romanescos. Ernest Francisco Fenollosa foi ‘talvez’ um descendente direto desste Alvarado, tenente de Cortez no México, que tinha se casado com a filha do rei Tlasclan. O pai de Fenollosa, Manuel, foi prodígio musical em Málaga, antes de emigrar para Salem, Massachusetts; sua mãe, Mary Silsbee, vinha de uma família de navegadores que faziam a rota da China. Fenollosa cresceu no Salem dos anos 1850 a 1860, embalado por histórias sobre o sol espanhol e os tesouros do Extremo-Oriente. Sua mãe morreu quando ele tinha treze anos. Seu pai suicidou-se doze anos mais tarde. Então ele se casou com o seu amor de infância e levou a mulher para o desconhecido, ao Japão. A sorte lhe sorri, e quando ele voltou para Boston, em 1890, era um homem próspero e cheio de futuro. Mas arruinou sua carreira fugindo com uma jovem mulher em direção a uma nova vida de sábio errante. Produziu então as suas obras mais originais, mas foi interrompido por uma doença repentina. Suas cinzas repousam no Japão, perto de um templo budista de que gostava, sobre as colinas que dominam o lago Biwa.

segunda-feira, 2 de março de 2009


Canto dos emigrantes


Quando cheguei ao Recife, depois de dez anos de ausência, fui encontrar meu amigo Orley Mesquita na Casa da Cultura, onde trabalhava. Deu-me um livro de presente. Na capa, um homem com a calça molhada de urina, preso pelo braço por um policial munido de cassetete. Era o Noticiário, de Alberto Cunha Melo, cuja poesia me causou mais impacto do que a fotografia. Surgia, naqueles anos – e todos nós sabíamos disso – um dos maiores poetas de nossa geração.
Quando fez sua grande viagem, em outubro de 2007, encontrava-me na França, em Nantes. Numa leitura de poesia, na sala Pannonica – especializada em jazz, mas onde a Maison de la Poèsie realiza seus eventos – li o poema clássico de Alberto, Os emigrantes. Fiz minha leitura em português e o poeta Bernard Bretonnière encarregou-se de ler a tradução francesa de Renaud Barbaras. O silêncio que se fez depois me levou a escutar um leve barulho, que ainda não sei se era vôo de pássaro ou o eco longínquo do último trem de Joaquim Cardozo subindo ao céu... Lembrei de uma das últimas vezes que avistei Alberto. Nossos encontros eram raros e se davam sempre na Biblioteca Pública, onde ele dirigia a seção de obras raras. Disse-lhe que entre seus livros eu preferia Noticiário. Também era sua opinião, disse-me. Falamos de Horácio, das odes de Horácio, um de seus poetas preferidos. E por cima de seu ombro li – como o fazia a cada vez que voltava à Biblioteca –, um de seus mais belos poemas, Seção de obras raras, emoldurado na parede da sala onde trabalhava. E assim deveria estar em todas as bibliotecas públicas do país.


Canto dos emigrantes
Alberto Cunha Melo

Com seus pássaros
ou a lembrança de seus pássaros,
com seus filhos
ou a lembrança de seus filhos,
com seu povo
ou a lembrança de seu povo,
todos emigram.
De uma quadra a outra
do tempo,
de uma praia a outra
do Atlântico,
de uma serra a outra
das cordilheiras,
todos emigram.

Para o corpo de Berenice
ou o coração de Wall Street,
para o último templo
ou a primeira dose de tóxico,
para dentro de si
ou para todos, para sempre
todos emigram.

Chant des émigrants

Avec leurs oiseaux
ou le souvenir de leurs oiseaux,
avec leurs enfants
ou le souvenir de leurs enfants,
avec leur peuple
ou le souvenir de leur peuple,
tous émigrent.
D’un moment à l’autre du temps,
d’une plage à l’autre
de l’Atlantique,
d’une chaîne à l’autre
de la cordillère,
tous émigrent.

Pour le corps de Bérénice
ou le cœur de Wall Sreet
pour le dernier temple
ou la première dose de poison,
pour l’intérieur de soi
ou pour tous, pour toujourstous émigrent

(tradução de Renaud Barbaras)

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A ilustração é o Angelus Novus, de Paul Klee.

Bruxelas, de Domingos Alexandre

Edson Nery da Fonseca me perguntou quem era o autor de um belíssimo poema que ele havia lido, intitulado Bruxelas e eu lhe respondi que era Domingos Alexandre. Sugeri que os dois se conhecessem. O que foi feito. A mídia literária fashion de Pernambuco tem deixado de lado nomes como o de Domingos Alexandre, cuja cultura e domínio poético o situam entre os melhores poetas brasileiros contemporâneos. Enquanto isso, ele continua a estudar línguas, sua distração predileta, e a escrever poemas, dos quais Bruxelas é uma pequena mostra.

Bruxelas

A Esman Dias

Escurecia e o dia era tão frio
que cada rua era um desvão sombrio
e nossos passos pelo calçamento
num compasso de mudo desalento
soavam como fuga para o Eterno
ante o cerco sem fim daquele inverno.
As pessoas envoltas em seus mantos
passavam numa profusão de espantos
perdendo-se, de vez, por trás dos muros
em busca de lugares mais seguros
e o céu baixava com indiferença
a nublada carranca. A noite imensa
sem coorte de estrelas e sem lua
caía bruscamente sobre a rua.
E eu seguia sem rumo e sem saída
na noite que inundava minha vida.

Sob os arcos de um velho monumento
gemia um vagabundo sonolento
e o vento uivando para todo lado
passava como um lobo esfomeado.
Naquela noite minha solidão
se arrastava ao meu lado como um cão
que embora exposto à dor e ao abandono
se recusava a abandonar o dono.
E eu, desterrado e, ali, vagando a esmo,
carregando esse espectro de mim mesmo,
caminhava sob a garoa fria
que doía nos ossos e feria
com as pontas dos dedos o meu rosto
aumentando-me a chaga do desgosto
numa Bruxelas para sempre hostil,
a centenas de léguas do Brasil.

A ilustração é do pintor belga Paul Delvaux (1897-1994).

domingo, 1 de março de 2009




Eugenio Montale

Forse un mattino andando in un’aria di vetro...

Talvez uma manhã andando em ar de vidro,
árido, voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada a minhas pés, o vazio detrás
de mim, com um terror de ébrio.

Depois, como num quadro, acamparão de chofre
árvores casas colinas, para o engano costumeiro.
Mas eis que será tarde: e eu andarei mudo,
entre os homens que não se voltam, com meu segredo.

A propósito desse poema de Eugenio Montale, escreveu Ítalo Calvino: “O ar-vidro é o verdadeiro elemento dessa poesia, e a cidade mental em que a situo é uma cidade de vidro que se faz diáfana até desaparecer. É a determinação do meio que desemboca no sentido do nada (enquanto em Leopardi é a deterinação que atinge o mesmo efeito). Ou, para ser mais preciso, existe um sentido de suspensão, do ‘Talvez certa manhã’ inicial, que não é indeterminação mas equil[íbrio atento, ‘andando em ar de vidro’, quase caminhando pelo ar, no ar, no frágil vidro do ar, na luz fria da manhã, até que não nos damos conta de estar suspensos no vazio” (...).”

CALVINO, I. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras. 2007. p. 223.