terça-feira, 31 de janeiro de 2012


 Como era Camões?

A fisionomia de um autor não tem muita importância. É a obra que vale. Tratando-se de Camões, no entanto, sua iconografia foi tão difundida que às vezes entre dois de seus retratos a única coisa que se assemelha é o olho cego. B. Xavier Coutinho, no estudo Camões e as artes plásticas: subsídios para a iconografia camoniana, publicado em dois volumes pela Livraria Figueirinha, no Porto (1946) – que contem certamente a mais exaustiva documentação sobre o assunto –, escreve que “dois retratos estão na base de toda a iconografia camoniana, um o que foi desenhado por Fernando Gomes, aí por 1570, e o outro, o retrato oriental datado de 1581. Há pouco ainda reveladas estas duas espécies notáveis são a verdadeira certidão de autenticidade, em contra-prova, dos traços fisionômicos de Camões que, no século XVII, as gravuras de A. Paulus (1624) e Pedro de Villa Franca Malagon (1639) popularizaram superabundantemente, levando-os ao prelo a todos os recantos da terra”. 

Ibn Kaldhun: lições sobre poética

Ibn Kaldhun (1332-1406) escreveu as Moqadimmah, uma espécie de Ciência Nova da história. O seu tratado enciclopédico buscou compreender o estado social do homem e o evoluir das civilizações. Sua obra ocupa lugar especial na literatura.
A Poesia (Shir) merece observações interessantes do escritor e historiador, um dos mais cultos de sua época. De todas as formas de alocução a Poesia é, segundo ele, a que os árabes consideravam a mais nobre. Em contradição com a escrita dos prosadores, a poesia, segundo Ibn Kaldhun, é um discurso eficaz, fundado na metáfora e nas descrições e dividido em trechos que se correspondem pela medida (prosódia) e pela rima; trechos que, cada um, independentemente do que precede e do que se segue, expressam um pensamento cabal e têm um objeto determinado. 
O estilo é definido como a “linguagem da gente de arte” e os requisitos que ele considera fundamentais para compor versos e dominar a arte respectiva são os seguintes:
1.Aprender de memória muitos trechos poéticos até que “a alma tenha adquirido a faculdade de tecer o mesmo tear”. Os trechos a serem decorados devem ser de autoria de poetas insignes.
2.Procurar um retiro absoluto, regado por águas correntes e povoado de flores para se entregar às especulações.
3.Ter consciência do quanto custa colocar a rima no devido lugar.
4.Evitar as expressões vulgares.
5.Ser consciente de que a poesia só é fácil quando as ideias são apresentadas ao entendimento simultaneamente com as palavras.
Ibn Kaldhun critica cânticos que contêm louvores ao Senhor e ao Profeta e raramente são bem feitos, pois esse tipo de composição requer bardos de talento superior. E para definição de poesia cita o poeta An-Nashi: “A poesia é a coisa cuja medida tu regularizas e cujo texto retocas com o objetivo de estreitar-lhe seus laços. Nela verás desregrar-se o ornato quando teu estilo é prolixo e nela aumentarás os encantos através da concisão”.
Acredito que poucos autores de seu tempo debruçaram-se com tal rigor e sabedoria sobre as questões técnicas da poesia e do gosto como árbitro.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

 
a rosa de Frankfurt

Romar Beling

pelo Meno
eu vi descer
a rosa vermelha que ela jogou

por que o fez?

segui com olhos apreensivos
seus versos passos pela rua

depois o carro a absorveu
e a levou para adentro da cidade

tão linda, já havia sumido
na correnteza madura

(a rosa,
que mãos colheram
numa canção,
ainda flutua
num rio secreto
dentro de mim)   

Frankfurt-am-Main,
setembro de 2002 


{A alegria de conhecer um poeta assim, esses versos soprados pelo minuano, de onde nos chegaram os de Mário Quintana e os de Augusto Meyer. Romar Beling é autor de Noites em chamas (Editora Gazeta, 2011). Um poeta.}

terça-feira, 17 de janeiro de 2012



Só agora, passada a ocasião em que todo o mundo se sente obrigado a falar do morto, escrevo sobre Luis Carlos Monteiro. Uma semana antes de seu passamento – termo mais simpático, que aprendi nos velórios de antigamente – fez-me uma visita. Ficamos quase uma tarde a conversar. Havia trazido meu exemplar da antologia de crônicas, que ele organizara para o Instituto Maximiano Campos, e prometera entregar-me em mão. Foi o bom pretexto para o encontro, o último. Falou de literatura com o respeito do artesão que ama o ofício,  aquele seu jeito modesto e simpático de operário das letras. Nos textos de seu blog, para o qual escrevia suas resenhas críticas de forma sistemática, percebia-se o quanto lia e acompanhava o universo dos livros. E mesmo quando seus escritos padeciam eventualmente de alguma observação discutível, ou eram merecedores de algum reparo, sentia-se que eram movidos por uma força maior que os salvava: a paixão pela literatura. Não parecia bem, naquela tarde, Luís Carlos. Via-se que um mal qualquer lhe tocara. Mas ninguém pressentia que Ela chegaria tão depressa. Saiu alegre da visita, com a promessa de uma nova conversa, deixando no ar seu Mundo circundante, que poderemos reler com saudade até quado a internet o mantiver, e no qual postou, nos seus últimos dias, à guisa de testamento ou de pressentimento, este poema de Micheliny Verunschk:

História
 Micheliny Verunschk

Desenterrar os mortos
e chupar seus ossos,
sugar seu mosto
de terra e sangue seco,
seu gosto secreto
de anos infindáveis,
arcos,
costelas,
arquitetura.

Se infeccionar com os mortos.
Triturar seus artelhos
de esponja ressequida,
pintar de negro e noite
de dentes e saliva
e abandonar o sonho
viva, muito viva.