sábado, 28 de agosto de 2010

Aula de física

Ronaldo Costa Fernandes

O pêndulo é suspenso pela dúvida
que transforma em dois o que é um.
O pêndulo e seus braços
que marcham sem sair do lugar.
Seguro à dúvida,
não sou dois nem um,
marcho parado,
sem conta que me dê jeito,
sem física que me conforme.


Obs.: Ronaldo Costa Fernandes, recolhido no seu canto, em algum lugar de Brasília, é um dos grandes poetas brasileiros. Pouco importa se ele escreve: Sou um sujeito antes só\que mal acompanhado ando de mim. Acompanhemos sua poesia... (A ilustração é de Max Ernst).

quinta-feira, 19 de agosto de 2010


De biblioteca...

- Vim procurar uma palavra perdida num texto de Joaquim Cardozo, no Livro do Diário...
O poeta me recebe num exíguo escritório, entre arquivos de aço, recortes, livros ensebados.
Na parede, um poema de sua autoria: “Seção de Obras Raras”. Deveria ser fixado nas paredes de nossas bibliotecas. Fora, o parque Treze de Maio: galhos e raízes rasgam céu e terra, num emaranhado de vísceras: poemas de Alberto Cunha Melo.
Queixa-se dos vencimentos, fala de biblioteca, discursa sobre Horácio, um de seus preferidos.
E eu, que procurava apenas uma palavra fugida de um ensaio do poeta do Signo Estrelado sobre Manuel Bandeira.
Não a encontrei. O tipógrafo havia podado uma das frases. Não era o x da equação de um poema de Cardozo, mas qualquer coisa que faltasse a algum de seus textos era tijolo faltante de uma casa.
- E agora, Poeta?
- Pode inventar.
Toda palavra é uma mentira de Deus.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Uma anotação sobre tradução

Falhas de tradução podem levar facilmente a equívocos de interpretação. Exemplo: uma tradução do ensaio O narrador, de Walter Benjamin (Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ed. Brasiliense, tradução de Sergio Paulo Rouanet).
Certas passagens dessa tradução brasileira são quase incompreensíveis. No início do capítulo XVII do ensaio está escrito:“Poucos pensadores tiveram uma afinidade tão profunda pelo espírito do conto de fadas como Leskov”. (p. 216) Não conheço a língua alemã, mas o texto francês, traduzido e revisado pelo próprio Benjamin (Écrits français. Gallimard) diz assim: “Poucos narradores parecem tão profundamente impregnados do espírito dos contos quanto Leskov” (*). Trata-se apenas de uma frase, ou de uma palavra, mas ela muda completamente o sentido do ensaio. Benjamin não poderia se referir a “conto de fadas”, pois não são contos de fadas aqueles veiculados no passado pelos artesãos, comerciantes ou marinheiros, arquétipos de que trata O narrador. O próprio texto da tradução se contradiz, quando se refere a ‘conto de fadas’ numa página e, logo em seguida, faz referência a personagens como “o tolo”, “o inteligente”, “o caçula” etc.
Em outra passagem ( p. 201) do mesmo ensaio, lê-se: “Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem vive”. Na tradução (insistimos, feita pelo próprio Benjamin), a palavra correta não é perplexidade, mas abulia, que significa falta de vontade, de ânimo para se tomar decisão, o que é bem diferente de perplexidade.
Para um autor como Walter Benjamin, (este seu ensaio é intensamente analisado nas universidades), filósofo para quem cada palavra pode encerrar um conceito, cada pequena observação um pensamento original, a tradução imperfeita é susceptível de comprometer a formulação de uma teoria ou de tornar incompreensível aquilo que ele conseguiu expressar com o máximo de clareza.
(*) Peu de narrateurs paraissent aussi profondément imprégnés de l'esprit des contes que Leskov.(p. 291)