segunda-feira, 31 de maio de 2010


Fernando Pessoa e O Homem de Porlock

O curioso texto de Fernando Pessoa, O Homem de Porlock, trata da composição do poema Kubla Kahn, da autoria do poeta inglês Coleridge. O episódio foi tratado por Borges no ensaio El sueño de Coleridge, em 1952. O artigo de Fernando Pessoa, publicado no nº 2 da revista Fradique, Lisboa, foi publicado em 15 de fevereiro de 1934; portanto, mais de vinte anos antes do texto do escritor argentino.
Segundo Fernando Pessoa, depois de ingerir um ‘anódino’ – de acordo com outras versões tratava-se de ópio – Coleridge adormeceu. Sobreveio um sonho extraordinário, acompanhado de ‘expressões verbais’, que ele, após o despertar, passou a transcrever. Mas foi interrompido por um visitante desconhecido, apelidado de o ‘Homem de Porlock’, nome da cidade vizinha da aldeia onde residia o poeta. Assim, o texto ficou reduzido a fragmentos, incompleto.
Talvez por isso Fernando Pessoa o denominou ‘quase-poema’, na frase aparentemente contraditória de seu artigo: “Esse quase-poema é dos poemas mais extraordinários da literatura inglesa”. A afirmação conduz a uma outra opinião, igualmente interessante, do poeta: a de que a literatura inglesa era a mais importante entre todas, à exceção da grega. Numa época em que a literatura ocidental, sobretudo a portuguesa, recebia da França sua influência maior, Fernando Pessoa se situava, como sempre, a contracorrente. Educado em Durban, na África do Sul, o inglês, de fato, lhe era tão familiar quanto o português. Além disso, foi o principal idioma de trabalho na sua atividade de “correspondente estrangeiro em casas comerciais”, conforme definiu sua profissão em nota biográfica com data de 1935.
Para Fernando Pessoa, o Kubla Khan, de Coleridge, “era o princípio e o fim de qualquer coisa espantosa, de outro mundo, figurada em termos de mistério que a imaginação não pode humanamente representar-se, e da qual ignoramos, com horror, qual poderia ter sido o enredo”. Fernando Pessoa considera que Poe – um dos seus poetas prediletos – nunca “atingiu o Outro Mundo dessa maneira nativa ou com essa sinistra plenitude”. No entanto, ao contrário do autor de O corvo – do qual foi tradutor - Coleridge não faz parte da relação de poetas que exerceram sobre o autor de Mensagem alguma influência literária.
Certamente por isso, o artigo ‘O Homem de Porlock’ consta de seus trabalhos sobre a realidade transcendente (no caso, sobre a comunicação onírica) e não entre aqueles voltados para a crítica literária.

P.S. A propósito, tomo a liberdade de transcrever a observação que recebi do amigo, professor e poeta Fred Silva, via e-mail, a respeito do artigo de Fernando Pessoa em questão:
Prezado Everardo,
acho que é o Homem de Porlock, ao contrário do que foi transcrito, que é a grande força criadora. A interrupção do devaneio é o início do trabalho. É quando ele finda que começa a surgir o poeta. Caso não fosse assim, o que distanciaria o significante nulo e o absurdo, cuja equidistância é a base da metáfora?

sábado, 29 de maio de 2010


O homem de Porlock

Fernando Pessoa

A história marginal da literatura regista, como curiosidade, a maneira como foi composto o escrito o Kubla Kan de Coleridge.
Esse quase-poema é dos poemas mais extraordinários da literatura inglesa – maior, salvo a grega, de todas as literaturas. E o extraordinário da contextura consubstancia-se com o extraordinário da origem.
Foi esse poema composto – narra Coleridge – em sonho. Morava ocasionalmente em uma herdade solitária, entre as aldeias de Porlock e Linton. Um dia, em virtude de um anódino que tomara, adormeceu; dormiu três horas, durante as quais, diz, compôs o poema surgindo em seu espírito, paralelamente e sem esforço, as imagens e as expressões verbais que a elas correspondiam.
Desperto, dispunha-se a escrever o que compusera; tinha escrito já trinta linhas, quando lhe foi anunciada a visita de ‘um homem de Porlock’. Coleridge sentiu-se obrigado a atendê-lo. Com ele se demorou cerca de uma hora. Ao retomar porém a transcrição do que compusera em sonho, verificou que se esquecera de quanto lhe faltava escrever; não lhe ficara lembrado senão o final do poema – vinte e quatro linhas.
E assim temos esse Kubla Kahn como fragmento ou fragmentos; - o princípio e o fim de qualquer coisa espantosa, de outro mundo, figurada em termos de mistério que a imaginação não pode humanamente representar-se, e da qual ignoramos, com horror, qual poderia ter sido o enredo.
Edgar Poe (discípulo, soubesse-o ou não, de Coleridge), nunca, em verso ou prosa, atingiu o Outro Mundo dessa maneira nativa ou com essa sinistra plenitude. No que há de Poe, com toda a sua frieza, alguma coisa resta de nosso ainda que negativamente.; no Kubla Kahn tudo é outro, tudo é Além; e o que se não sabe o que é, decorre em um Oriente impossível, mas que o poeta positivamente viu.
Não se sabe – não o disse Coleridge – quem foi aquele ‘Homem de Porlock’, que tantos, como eu, terão amaldiçoado. Seria por uma coincidência caótica que surgiu esse interruptor incógnito, a estorvar uma comunicação aparente de qualquer oculta presença real, das que parecem conscientemente entravar a revelação dos Mistérios, ainda quando intuitiva e lícita, ou a transcrição dos sonhos, quando neles durma qualquer forma de revelação?
Seja como for, creio que o caso de Coleridge representa – numa forma excessiva, destinada a formar uma alegoria vivida – o que com todos nós se passa, quando neste mundo tentamos, por meio da sensibilidade com que se faz arte, comunicar, falsos pontífices, com o Outro Mundo de nós mesmos.
É que todos nós, ainda que despertos quando compomos, compomos em sonho. E a todos nós, ainda que ninguém nos visite, chega-nos, de dentro, ‘o Homem de Porlock’, o interruptor previsto. Tudo quanto verdadeiramente somos, sofre (quando o vamos exprimir, ainda que só para nós mesmos), a interrupção fatal daquele visitante que também somos, daquela pessoa externa que cada um de nós tem em si, mais real na vida do que nós próprios: - a soma viva do que aprendemos, do que julgamos que somos, e do que desejamos ser.
Esse visitante – perenemente incógnito porque, sendo nós, ‘não é alguém’; esse interruptor – perenemente anônimo porque, sendo vivo, é ‘impessoal’ – todos nós o temos que receber, por fraqueza nossa, entre o começo e o termo do poema, inteiramente composto, que não nos damos licença que fique escrito. E o que de todos nós, artistas grandes ou pequenos, verdadeiramente sobrevive – são fragmentos do que não sabemos que seja; mas que seria, se houvesse sido, a mesma expressão da nossa alma.
Pudéssemos nós ser crianças, para não ter quem nos visitasse, nem visitantes que nos sentíssemos obrigados a atender! Mas não queremos fazer esperar quem não existe, não queremos melindrar o ‘estranho’ – que é nós. E assim, do que poderia ter sido, fica só o que é; - do poema, ou dos opera omnia, só o princípio e o fim de qualquer coisa perdida – disjecta membra que, como disse Carlyle, é o que fica de qualquer poeta, ou de qualquer homem.
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P.s.- Li este texto no IIIº volume das Obras de Fernando Pessoa (Lello & Irmão, 1986), na parte intitulada O estádio gnóstico. Nunca havia lido o texto. Achei que valia a pena publicálo neste blog. Comentários?...
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quinta-feira, 20 de maio de 2010


Um soneto de Miguel Hernández

Um belo soneto de Miguel Hernández (1910-1942),
poeta espanhol morto na prisão fascista de Alicante, em 1942.

Poema 23 (do livro El rayo que no cessa)

Como el toro he nacido para el luto
y el dolor, como el toro estoy marcado
por un hierro infernal en el costado
y por varón en la ingle con un fruto.

Como el toro lo encuentra diminuto
todo mi corazón desmesurado,
y del rostro del beso enamorado,
como el toro a tu amor se lo disputo.

Como el toro me crezco en el castigo,
la lengua en corazón tengo bañada
y llevo al cuello un vendaval sonoro

Como el toro te sigo y te persigo,
y dejas mi deseo en una espada,
como el toro burlado, como el toro.

quarta-feira, 19 de maio de 2010


De um texto sobre Álvaro Lins...

(...) Sua idéia sobre “poesia moderna”, embora não tenha sido claramente elaborada, intuía aquela dimensão que seria explicitada por Claude Esteban quase três décadas depois, ao analisar a obra de Gaston Bachelard. Argumentou o crítico francês, que apesar das afirmações do autor de Psychanalyse de feu, o poeta não é apenas um “fazedor” de palavras, mas “um inventor de sentidos”. Sob as teias da construção poética, para a qual o autor consagra todo o seu ser, unem-se intuição e consciência, história e elementos da realidade imediata. A redução da poesia a um acontecimento lúdico ou simples “trampolim para o sonho” seria a negação de que o poeta é aquele que “enraíza nas palavras a confissão de uma finitude e a história dos inconciliáveis”.
Foi certamente com essa idéia de considerar o poeta como “fazedor de sentidos” que Álvaro Lins analisou os livros de Carlos Drummond de Andrade e de João Cabral de Melo Neto, que anunciavam, na sua correta interpretação, o surgimento de uma poética nova no cenário literário do Brasil, com dimensão e características próprias.
Álvaro Lins admitia ser o destino da poesia contrariar violentamente “os aspectos convencionais ou superficiais das coisas”. Ao analisar o livro de estréia de João Cabral de Melo Neto, O engenheiro, afirmou que para realizar alguma coisa de especial na ordem estética os poetas deveriam começar pela forma, rompendo com as fórmulas do passado. E enunciou o que para ele era revolucionário: sem negligenciar a valorização da ‘essência poética’, cabia aos novos – entre os quais situava João Cabral de Melo Neto – operar o restabelecimento de uma forma artística que não fosse simples herança da tradição parnasiana, mas o que ele, Álvaro Lins, considerava uma “evolução dentro do gosto e senso estético do nosso tempo”.
Contudo, dessa idéia de “poesia moderna”, muito mais intuída do que explicitada com clareza nos textos do crítico brasileiro, sobressaem certas incoerências no que diz respeito à forma de observar o fazer poético de alguns escritores criticados em Os mortos de sobrecasaca. É que diante de uma “poesia moderna”, que ele julga estar empreendendo uma “espécie de exploração no tempo e no espaço”, reconheceu sua própria perplexidade ao acreditar que os poetas brasileiros estavam próximos de uma grande descoberta, mas revelou não saber qual o destino dessa poesia. Quando, por exemplo, analisou as Elegias, de Vinicius de Moraes, confessou, “sem constrangimento”, não ter qualquer impressão sobre o poema Última elegia, escrito, segundo ele, “numa língua particular, mistura de inglês e de português, com palavras ou jeito de arranjos gráficos de ordem meramente mnemônica”.
É, sem dúvida, louvável constatar essa humildade do crítico ao reconhecer limitações diante de um poema que utiliza uma linguagem inusitada, numa atitude que reforça o respeito à honestidade intelectual de um intelectual de seu porte. No entanto, os recursos utilizados na confecção da Última elegia não constituíam novidade. Na literatura de língua portuguesa poderiam ter sido cotejados com poemas como Manicure, de Mário de Sá Carneiro, ou mesmo com a Ode triunfal, de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), ambos escritos em 1915, ou seja, quase três décadas antes da publicação do livro de Vinicius de Moraes. Além disso, era de se esperar uma maior atenção à experiência do autor de Elegias, na sua tentativa de buscar aquilo que o próprio Álvaro Lins preconizava para o “poema moderno”, ou seja, uma substância poética expressa numa forma poética particular. Assim, pelo menos nesse caso, Álvaro Lins parece ter se furtado a examinar com maior empenho aquele “objecto que está em frente, fixo, estruturado: o texto, conjunto orgânico de sinais, o preto no branco, a mancha da página”. Para depois, segundo o conselho de Jacinto do Prado Coelho, poder “ir da estrutura ao significado profundo. Da estrutura à gênese. Dos estímulos aos efeitos”.(...)

(Ilustração: Max Ernst)



A tragédia da arte moderna

No ensaio Thomas Mann e a tragédia da arte moderna, Lukács observa a evolução da obra de Goethe e a de Thomas Mann e mostra como os dois foram se abrindo à universalidade, ao viverem transformações que alteraram profundamente a face do mundo. Segundo ele, são casos extremamente raros entre escritores. E chama a atenção sobre o quanto em Balzac, por exemplo, a crise de 1848 obscureceu a última produção do escritor francês. Em Goethe, a evolução traduziu-se num crescimento da abstração e sua “estrutura artística tornou-se cada vez mais artificiosa”. Em Thomas Mann ocorreu o oposto, com o “enriquecimento das concretas determinações poéticas e, sobretudo, dos atributos histórico-sociais dos personagens criados”. Os dois escritores não se fecharam às novas correntes literárias contemporâneas, mas mantiveram em relação a elas uma atitude crítica.
Num momento de discussão sobre necrológios um bom tema para debate...

terça-feira, 18 de maio de 2010


A foto rara de Rimbaud

No dia 15 de abril, o jornal francês Le Figaro, publicou a fotografia de um grupo de pessoas no Hôtel de l’Univers, em Áden. A foto em si - encontrada num lote de documentos comprado por dois sebistas franceses, Alban Caussé e Jacques Desse -, não teria tanta importância. Acontece que um dos dos personagens retratados na fotografia é nada menos do que Arthur Rimbaud, o poeta das Iluminações. Trata-se da única foto de Rimbaud adulto, período em que ele passou a viver na Abissínia. O jornal informa que, em artigo publicado na revista Histoires Littéraires, Jean-Jacques Lefrère, biógrafo do poeta, e Jacques Desse observam que, tal como no quadro pintado por Fantin-Latour (no qual Rimbaud aparece ao lado de Verlaine), na fotografia descoberta "todo seu ser parece protestar contra sua integração nesse ritual burguês de sessão de fotografia de grupo, à qual, no entanto, ele não conseguiu escapar"...

http://www.lefigaro.fr/livres/2010/04/14/03005-20100414ARTFIG00782-rimbaud-la-photo-retrouvee-.php
 
O primeiro escritor


Vivemos num país de muitos países, de muitas literaturas. Por isso, acabamos por desconhecer escritores de outras regiões.
É o caso de Álvaro Maia, é o caso do Amazonas. Além de escritor e poeta, Álvaro Maia foi governador do Amazonas por mais de dez anos, senador durante três mandatos.
Assis Chauteaubriand o considerava um dos maiores escritores da Amazônia e do Brasil. Conta que ao ouvi-lo discursar, certo dia, observou que o “tocante e misterioso antepassado” daquele poeta amazonense devia ser um mujique da estepe russa.
O poeta amazonense tinha algo, conforme acentuou o jornalista, de personagem de Tolstoi. Mas seus antepassados chegaram tangidos pela seca. Seu pai foi obrigado a trocar o Cariri cearense pelos altos seringais do Béem, nos campos gerais do Humaitá. Foi na época em que a expansão da borracha arrastava, então, milhares de sertanejos para o Inferno Verde, embarcados nos porões de navios do Lóide Brasileiro, mar acima, e nas “gaiolas” pelos rios do Amazonas, rio abaixo. Faltava apenas o chicote do feitor, conforme narra Álvaro Maia. Porque, segundo ele, “a nostalgia dos sertões, mesmo crestado pelas secas, era o banzo dolorido, que não deixava de curvar as cabeças do rebanho humano”.
 Despejados nos seringais – como o do rio Madeira, onde nasceu, os sertanejos eram submetidos a um regime de exploração implacável. Euclides da Cunha, em anotações que fez durante sua missão no Alto Purus, descreveu como a “mais poderosa organização de trabalho que ainda engendrou o mais desaçamado egoísmo”.
Naquele mundo de criminosos, aventureiros e místicos – elementos que costumam povoar os grandes desertos – onde se mesclavam lendas amazônicas e tradição nordestina, nasceu a literatura de Álvaro Maia. Ali, o ouvido atento do escritor registraria as histórias que iriam compor livros como Gente dos Seringais e Beiradão.
A prosa de Álvaro Maia e pertence à linhagem da literatura de um Ferreira de Castro, de A Selva, ou de um Alberto Rangel, de O Inferno Verde.
Quando eu era jovem, Álvaro Maia visitou o Crato. Veio rever a terra de seu pai, visitar parentes. Lembro-me dele, da conversa em almoço na casa de meu pai, do qual era parente, em torno dos pratos da terra (o arroz de pequi, o baião de dois, o doce de buriti...). Nada de literatura. O assunto era o destino da parentela, a situação das terras da família, o futuro político do antigo governador do Amazonas...
Só depois, vieram os livros pelo correio, com dedicatórias ao meu pai. E eu os li com a curiosidade de quem havia conhecido pela primeira vez um escritor...
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segunda-feira, 17 de maio de 2010

De poeta a poeta

"Se me perguntassem: o que distingue o grande poeta?
Eu responderia:

Ser capaz de fazer o poema inesquecível.
O poema que adere à nossa vida de sentimento e reflexão,
tornando-se coisa nossa pelo uso.
Para mim, Joaquim Cardozo, entre os muitos títulos de criador,
se destaca por haver escrito
o longo e sustentado poema “A Nuvem Carolina”,
que é uma de minhas companhias silenciosas de vida."
(Carlos Drummond de Andrade)

P.s.: A ilustração é A cidade dos sonhos, de Paul Klee.

domingo, 16 de maio de 2010

Calvino e Hemingway


Quando lemos Italo Calvino – um dos mais brilhantes escritores e ensaístas do século que passou – deveríamos ter em mente que muitos de seus textos foram escritos quando ele ainda militava no PCI, o Partido Comunista Italiano. Subjacente às suas análises há, portanto, um elemento que transmite à sua escrita um viés especial: a sensibilidade dialética para observar os fatos, sua capacidade de compreendê-los dentro de um tempo e de suas marcas.
Pensei nisso ao ler o ensaio Hemingway e nós, incluído no livro Por que ler os clássicos (São Paulo: Companhia das Letras, 2007), publicado originalmente em 1954 (no Il contemporaneo I,33). Nele, Ítalo Calvino procura explicar sua admiração por Hemingway. Era a época das grandes causas antifascistas: literatura e política com certa freqüência caminhavam juntas. Depois, ao assumir uma distância crítica, Calvino vai proceder à dissecação da obra do escritor estadunidense, marcada pelo fascínio da caça, das touradas, das guerras. Pois difícil é separar a obra de Hemingway das imagens que transmitem aquela espécie de existencialismo selvagem, característica de uma certa literatura dos Estados Unidos, da qual Jack London foi outro representante inconteste.
O herói de Hemingway, escreve Ítalo Calvino, identifica-se com as próprias ações que executa, enquanto em torno dele “sempre existe algo de que quer fugir, um sentido de inutilidade de tudo, de desespero, de derrota, de morte”.
Confesso que, talvez por isso, eu nunca tenha tido o fascínio de minha geração ao ler O velho e o mar. Aquela luta desigual entre o homem e o peixe, aqueles detalhes de gestos e de pequenas ações me deixavam à espera que alguma coisa de mais importante acontecesse. Mas ao terminar a leitura do livro, lembro, tive, de fato, aquela sensação de vazio e de inutilidade de que fala Ítalo Calvino.
Calvino comenta que a não-filosofia de Hemingway é a contrapartida de sua relação com o neopositivismo norte-americano, “que propõe as regras do pensamento num sistema fechado, sem outra validade a não ser nele mesmo” e que corresponde “ao código ético-desportivo dos heróis hemingwayanos, única realidade segura num universo incognoscível”. Talvez ao crítico italiano não tenha parecido interessante efetuar paralelo entre essa literatura e a ideologia do “fordismo”, que deu sustentação ao capitalismo do país do autor de Por quem os sinos dobram. O “fordismo” tinha por objetivo a racionalização do trabalho taylorista, a padrozização e eficiência da produção de mercadorias em série. O fascínio ideológico pelo movimento e pela ação, na literatura, também transforma personagens em pequenas máquinas que vivem uma trama, mas não conseguem opinar sobre ela. Nesse aspecto, a literatura dos Estados Unidos está a alguns quilômetros de distância da literatura alemã. Mas isso é outra história...
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sexta-feira, 14 de maio de 2010


Um túmulo no fundo das nuvens


Há livros cuja tinta de suas letras têm uma cor diferente da que sai da pena utilizada pelo comum dos mortais. A escrita ou a vida (Cia.das Letras, 1995) é um desses que nos despertam como uma má notícia no meio da noite. É de se esperar que a mesma coisa aconteça com Une tombe au creux des nuages (Um túmulo no fundo das nuvens), que acaba de ser editado pela Flammarion (Collection Climats). O autor do livro é o franco-espanhol Jorge Semprún. O título, um verso de Paul Celan, poeta judeu que se suicidou em Paris e escreveu em alemão – a língua do carrasco – alguns dos mais belos versos do século XX.
Jorge Semprún, ex-dirigente comunista, ex-resistente, deportado de Buchenwald, campo de concentração nazista, diz, na entrevista concedida ao hebdomadário francês l’Express, não ser nem espanhol, nem francês, mas apenas um deportado de Buchenwald. Na sua opinião existe sérios indícios no pensamento alemão contemporâneo de que “é possível a Alemanha romper para sempre com o que o nazismo encarnava”. Por outro lado, considera um “contrasenso insuportável” a utilização da palavra ‘holocausto’. “Extermi-nação”, segundo ele, diz tudo e pode ser compreendida em todas a línguas do mundo...

O livro Une tombe au creux des nuages (Um túmulo no fundo das nuvens) reúne a tradução de conferências feitas por Jorge Semprùn na Alemanha, em alemão, num período de vinte anos.
Quando teremos a tradução no Brasil?
 
http://www.lexpress.fr/culture/livre/jorge-semprun-je-ne-suis-ni-espagnol-ni-francais-je-suis-un-ancien-deporte-de-buchenwald_891830.html?XTOR=EPR-620
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Poesia portuguesa na Fundação das Casas de Fronteira e Alorna



O surrealismo português é tema de uma série de leituras no Palácio Fronteira, conhecido pela azulejaria do século XVII. Fomos introduzidos ali pelo poeta Nuno Júdice, que acaba de lançar o livro Guia de conceitos básicos (D. Quixote, 2010). No meu blog, incluí um de seus textos. Ontem foi a vez de leituras de poemas de António Pedro (1909-1966), muito menos conhecido entre nós do que Alexandre O’Neill ou Mário Cesariny, pertencentes ao mesmo grupo literário. Além de poeta, António Pedro foi crítico, teatrólogo, artista plástico. Circulou nos meios intelectuais de Lisboa, Londres, Paris e morou no Brasil, em 1940 e 1941. Na ocasião, sua pintura foi motivo de um ensaio de Ungaretti, o poeta italiano que na época residia em São Paulo.
Curioso, o ‘surrealismo’ do poeta António Pedro: mescla de resquícios do Simbolismo, algo de Mário de Sá-Carneiro e investidas em experiências imagéticas. Não conseguimos descobrir ainda o que diferencia o surrealismo português do seu homônimo francês, inaugurado por André Breton...

P.S. As leituras ocorrem na Sala das Batalhas, onde oito painéis de azulejos narram as oito batalhas das Guerras da Restauração (1640 -1668). Um dos leitores dos poemas é o dono da casa, muito simpático, Fernando Mascarenhas, também 13º Conde da Torre, 12º Marquês de Fronteira, 13º Conde de Coculim, 14º Conde de Assumar e 10º Marquês de Alorna...
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terça-feira, 11 de maio de 2010


O ferrageiro de Carmona

João Cabral de Melo Neto

Um ferrageiro de Carmona,
que me informava de um balcão:
"Aquilo? É de ferro fundido,
foi a forma que fez, não a mão.

Só trabalho em ferro forjado
que é quando se trabalha ferro
então, corpo a corpo com ele,
domo-o, dobro-o, até o onde quero.

O ferro fundido é sem luta
é só derramá-lo na forma.
Não há nele a queda de braço
e o cara a cara de uma forja.

Existe a grande diferençado
ferro forjado ao fundido:
é uma distância tão enorme
que não pode medir-se a gritos.

Conhece a Giralda, em Sevilha?
De certo subiu lá em cima.
Reparou nas flores de ferro
dos quatro jarros das esquinas?

Pois aquilo é ferro forjado.
Flores criadas numa outra língua.
Nada têm das flores de forma,
moldadas pelas das campinas.

Dou-lhe aqui humilde receita,
Ao senhor que dizem ser poeta:
O ferro não deve fundir-se
nem deve a voz ter diarréia.

Forjar: domar o ferro à força,
Não até uma flor já sabida,
Mas ao que pode até ser flor
Se flor parece a quem o diga.

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domingo, 9 de maio de 2010


A opinião de Ricardo Reis...



Entre os textos surgidos do debate teórico entre Álvaro de Campos e Ricardo Reis, dois dos heterônimos de Fernando Pessoa, encontra-se esta passagem, bem contemporânea, como quase tudo que saiu da pena do grande poeta:

“Quanto mais fria a poesia, mais verdadeira. A emoção não deve entrar na poesia senão como elemento dispositivo do ritmo, que é a sobrevivência longínqua da música no verso. E esse ritmo, quando é perfeito, deve antes surgir da ideia que da palavra. Uma ideia perfeitamente concebida é rítmica em si mesma; as palavras em que perfeitamente se diga não têm poder para a apoucar. Podem ser duras e frias: não pesa – são as únicas e por isso as melhores. E, sendo as melhores, são as mais belas.
De nada serve o simples ritmo das palavras se não têm ideias. Não há nomes belos, senão pela evocação que os torna nomes. Embalar-se alguém com os nomes próprios de Milton é justo se se conhece o que exprimem, absurdo se se ignora, não havendo mais que um sono do entendimento, de que as palavras são o torpor.”


(in Pessoa, F., Obras, vol II. Porto: Lello & Irmãos Editores. 1986. p.1075.)
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sexta-feira, 7 de maio de 2010


Nuno Júdice

No dia 5, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, num encontro denominado Tordesilhas, reunindo poetas portugueses e brasileiros, Nuno Júdice leu o seguinte poema, de seu último livro Guia de conceitos básicos, publicado pela editora D. Quixote, este ano:


Uma reflexão sobre a beleza eterna, interrompida pela visão do efêmero

Nuno Júdice

A harmonia que, para os clássicos, exprimia a relação
das partes com o todo, atravessou os milênios sem alterar
o equilíbrio do homem no centro da sua esfera. Esse
homem, com a sua representação simétrica, define-se
a partir de um universo que tem limite
na compreensão divina da matéria
e do espírito. E poderia continuar assim, se
não ouvisse um copo a partir-se no fundo
da casa – alguém que se distraiu, e que rompeu,
de súbito, o meu raciocínio. Ao mesmo tempo,
porém, descobri que nada do que eu pensava
era original; e só ao apanhar do chão os vidros
partidos, um brilho breve no seu contacto com
a luz me fez pensar que, afinal, a harmonia
também nasce da destruição, e o centro da esfera
desloca-se para o fragmento que seguro com
os dedos, antes de o deitar para o lixo.
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domingo, 2 de maio de 2010

Reler Cesare Pavese

Verrà la morte e avrà i tuoi occhi -
questa morte che ci accompagna
dal mattino alla sera, insonne,
sorda, come un vecchio rimorso
o un vizio assurdo. I tuoi occhi
saranno una vana parola,
un grido taciuto, un silenzio.
Cosi li vedi ogni mattina
quando su te sola ti pieghi
nello specchio. O cara speranza,
quel giorno sapremo anche noi
che sei la vita e sei il nulla.

Per tutti la morte ha uno sguardo
Verrà la morte e avrà i tuoi occhi.
Sarà come smettere un vizio,
come vedere nello specchio
riemergere un viso morto,
come ascoltare un labbro chiuso.
Scenderemo nel gorgo muti.


Virá a morte e terá teus olhos -
esta morte que agora te acompanha,
desde manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra vã,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês todas as manhãs,
quando sobre ti te debruças
no espelho. Ó cara esperança,
nesse dia também saberemos
que és a vida e és o nada.

Para todos tem a morte um olhar.
Virá a morte e terá teus olhos.
Será como cessar um vício,
como avistar no espelho
ressurgir um rosto morto,
como auscultar um lábio ocluso.
Desceremos ao mudo abismo.
***