segunda-feira, 2 de março de 2009


Canto dos emigrantes


Quando cheguei ao Recife, depois de dez anos de ausência, fui encontrar meu amigo Orley Mesquita na Casa da Cultura, onde trabalhava. Deu-me um livro de presente. Na capa, um homem com a calça molhada de urina, preso pelo braço por um policial munido de cassetete. Era o Noticiário, de Alberto Cunha Melo, cuja poesia me causou mais impacto do que a fotografia. Surgia, naqueles anos – e todos nós sabíamos disso – um dos maiores poetas de nossa geração.
Quando fez sua grande viagem, em outubro de 2007, encontrava-me na França, em Nantes. Numa leitura de poesia, na sala Pannonica – especializada em jazz, mas onde a Maison de la Poèsie realiza seus eventos – li o poema clássico de Alberto, Os emigrantes. Fiz minha leitura em português e o poeta Bernard Bretonnière encarregou-se de ler a tradução francesa de Renaud Barbaras. O silêncio que se fez depois me levou a escutar um leve barulho, que ainda não sei se era vôo de pássaro ou o eco longínquo do último trem de Joaquim Cardozo subindo ao céu... Lembrei de uma das últimas vezes que avistei Alberto. Nossos encontros eram raros e se davam sempre na Biblioteca Pública, onde ele dirigia a seção de obras raras. Disse-lhe que entre seus livros eu preferia Noticiário. Também era sua opinião, disse-me. Falamos de Horácio, das odes de Horácio, um de seus poetas preferidos. E por cima de seu ombro li – como o fazia a cada vez que voltava à Biblioteca –, um de seus mais belos poemas, Seção de obras raras, emoldurado na parede da sala onde trabalhava. E assim deveria estar em todas as bibliotecas públicas do país.


Canto dos emigrantes
Alberto Cunha Melo

Com seus pássaros
ou a lembrança de seus pássaros,
com seus filhos
ou a lembrança de seus filhos,
com seu povo
ou a lembrança de seu povo,
todos emigram.
De uma quadra a outra
do tempo,
de uma praia a outra
do Atlântico,
de uma serra a outra
das cordilheiras,
todos emigram.

Para o corpo de Berenice
ou o coração de Wall Street,
para o último templo
ou a primeira dose de tóxico,
para dentro de si
ou para todos, para sempre
todos emigram.

Chant des émigrants

Avec leurs oiseaux
ou le souvenir de leurs oiseaux,
avec leurs enfants
ou le souvenir de leurs enfants,
avec leur peuple
ou le souvenir de leur peuple,
tous émigrent.
D’un moment à l’autre du temps,
d’une plage à l’autre
de l’Atlantique,
d’une chaîne à l’autre
de la cordillère,
tous émigrent.

Pour le corps de Bérénice
ou le cœur de Wall Sreet
pour le dernier temple
ou la première dose de poison,
pour l’intérieur de soi
ou pour tous, pour toujourstous émigrent

(tradução de Renaud Barbaras)

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A ilustração é o Angelus Novus, de Paul Klee.

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