terça-feira, 26 de abril de 2011


 A vitamina explosiva
As exposições universais foram, segundo Walter Benjamin, os “centros de peregrinação da mercadoria-fetiche”. Da mesma forma, pode-se dizer que, hoje em dia, as grandes feiras e bienais da edição são os centros de romaria do livro-objeto, cujo valor de troca passou a preponderar sobre seu valor de uso. Da mesma forma que as grandes construções, com seus grandes vãos, se tornaram possíveis com o advento do grande indústria da tecelagem e das estruturas metálicas (marcos da Revolução Industrial), a aceleração tecnológica, que se iniciou com a imprensa e continua com a informática e a digitalização, mudou de forma radical a fisionomia do livro. Objeto do sagrado, fundamento de grandes religiões (Bíblia, Alcorão), o livro degringolou em mercadoria plebeia: anunciado como produto, festejado como lançamento de roupa “prêt-à-porter”, distribuído em grandes lojas, vulgarizado pela resenha que possibilitou a escalada da leitura inteligente à leitura suficiente.
Na crista dessa vaga, esmaece o papel do crítico, cujo declínio acompanha o do político revolucionário. Sufocado entre a edição e a universidade, ei-lo submetido à tríade (Estado, Universidade, grandes editoras) que impera no mundo das letras, letras cada vez mais assimiladas a números (do número de exemplares vendidos à quantidade pontos acumulados no currículo Lattes).
A globalização (nome que, num passe universal de prestidigitação, foi dado ao capitalismo das grandes corporações financeiras) alarga seus espaços, ao mesmo tempo em que abrevia o tempo do lazer, cuja função tende a ser cada vez mais anestésica. Da mesma forma que músicas descartam letras reflexivas, a leitura precisa ser rápida e as tramas tendem a se desenvolver à guisa de roteiros cinematográficos. O novo escritor, ao digitar seus textos, imagina histórias a transcorrerem no écran engolidor de sonhos, aquele que nem mais requer deslocamentos para vermos como ficção o que acontece no cotidiano. Pouco importa o que viceja nos corredores do metrô: no iPad  livros e cinema se misturam ao anúncio dos novos gadgets que distanciam vida da vida. O livro, pelos seus desdobramentos, tem uma cadeia invisível mais perturbadora do que as engrenagens dos teares de Manchester.
E o leitor comum (ou o não leitor) vai à feira ou à bienal de livros como quem se desloca aos domingos para o Horto de Dois Irmãos, com a nostalgia dos sítios, ou aos shows de músicos, para recompor as cadências de um acordeom antológico.  Entre os montões de impressos dará preferência aos didáticos, a bom preço, para que o filho se destine a alguma carreira (o correr travestido em profissão). Nos espaços destinados aos ‘debates’ olhará sem interesse personagens de óculos a discorrerem sobre um tema marciano, dificilmente audível em meio ao insuportável murmúrio da multidão. Após a feira (ou bienal) esse não leitor (ou eventual) voltará à casa e se entregará à música brega – porque nada mudou na sua forma de pensar ou existir  – ainda sujo dos detritos do barro da tradição.  
Quanto ao ‘intelectual’, deixará as grandes superfícies carregado de tratados e edições raras, na sua ânsia de acumular ou colecionar (“o destino mais importante de todo exemplar é o encontro com ele, o colecionador, com sua própria coleção” (W.B.)).
No final do evento, nenhum deles se dará conta que no liquidificador gigante que mistura ingredientes arcaicos e de vanguarda pode estar uma vitamina explosiva, a mesma que nutriu, num outrora próximo, o fascismo ordinário.

3 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns, caro Everardo, por este lúcido, oportuno e necessário texto, contundente retrato destes nossos tempos de excessos e pouco conteúdo. O livro, não mais como objeto de conhecimento, mas apenas objeto de troca...
dalila teles veras

dalila teles veras disse...

Parabéns, caro Everardo, por este lúcido, oportuno e necessário texto, contundente retrato destes nossos tempos de excessos e pouco conteúdo. O livro, não mais como objeto de conhecimento, mas apenas objeto de troca...
dalila

Everardo Norões disse...

Camarada Everardo

Li a matéria. Como sempre, você agrega reflexão solidamente ancorada em conhecimento nas águas revoltas da realidade virtual.

Tentei dizer isso no próprio blogue, mas, como já aconteceu antes, a postagem de comentários é complicada e fica além dos meus parcos dotes informáticos.


HF