sábado, 13 de agosto de 2011




Meu lugar
Se a cidade é uma reunião de cidadãos, não é o caso do lugar onde moro. Onde moro, metade sobrevive em altos edifícios, construídos feito bunkers, nos quais os vizinhos às vezes nem mesmo se dão bom-dia. A outra, em favelas, sobre morros que despencam ou em mangues que se alagam quando a maré sobe. As pessoas das duas metades não se conhecem, suas relações são de inveja ou medo. Uma teme o assalto; a outra, a polícia. Uma se desloca em automóveis, enfrentando motos, buracos, sinais desordenados, caminhões que descarregam mercadorias em pleno dia e o carro do lixo que nunca sai à noite. A outra trafega de ônibus, é massacrada nos pontos de ‘integração’, vive a síndrome da 'lata de sardinha' e cotidianamente corre risco de vida. No lugar onde moro o riacho próximo foi transformado em esgoto, as construções sem controle tomaram conta das calçadas, há sempre lâmpada de poste que não acende, a música brega do vizinho violenta nossos ouvidos e as crianças vagam pelas esquinas num exercício de vadiagem que as levará ao crack e ao crime. No lugar onde moro há uma associação de moradores que somente serve para arregimentar eleitores. Quando chove é lama, se faz sol, som alto e cerveja. A metade que mora no alto não sabe o que acontece no rés-do-chão. Moro num lugar onde todo mundo reclama, mas ninguém protesta. Para uns é o lugar do ‘outrora’, para outros, o dos 'de fora'. Decididamente, não moro numa cidade. Sobrevivo num território do desgosto.

2 comentários:

dalila teles veras disse...

Triste e melancólica constatação, caro Poeta. Será preciso reinventar a cidade (reinventando-nos),buscar alguma forma ainda que utópica de transformação. Conseguiremos? Abraço da leitora
dalila

Unknown disse...

O que impressiona não é mais o medo, a inveja advindos desse apartheid social. Não é a vulnerabilidade, ante o entreguismo daqueles que não mais se indignam com paisagens assim... tão dicotômicas, que assusta.

O que impressiona mesmo é que, a despeito da grande e generosa sensibilidade do poeta, muitos dormem, como se em "O Jardim das Delícias" estivessem. Há algum outro bote salva-vidas, que não a poesia, para desta "A Nau dos Insensatos" livrar-nos?!

(PS.: Permissão para republicar, em meu blog, caro amigo poeta?!)