sábado, 13 de abril de 2013

 
 
Um certo goês
 
 A rua se chama Damião de Góis,
português de ascendência flamenga,
guarda-mor da Torre do Tombo,
perseguido pelo Santo Ofício,
cronista do rei D. Manuel.
É uma via estreita, quase vereda,
comparada às vastas avenidas que decompõem a cidade.
Bairro: Sommerschield;
nome também flamengo
(como Góis, quase goi).
No fim da rua não mora um anjo:
mas um sábio, indiano, cor de canela.
(Que pássaro, senão graúna,
para o negror do cabelo?)
Escritor, jornalista,
conselheiro ad hoc do presidente guerrilheiro,
é o maior conhecedor da África Austral.
Vem do outro lado do Índico.
Seu locus : Goa.
Melhor apelidar locus o lugar onde se surge:
espaço origem, simples condição:
sem pátria.
 
 Quatro séculos separam os dois cronistas:
o do Princípio e o do Fim.
O primeiro registra sucessos na Ásia:
Comentari Rerum Gestarum in India.
O segundo, rebusca anotações sobre derrotas em África,
a que se limita pelo Cabo da Boa Esperança.
E desemboca no Inferno.
 
 (No aquário, o pequeno tubarão,
entre peixes ornamentais do Lago Niassa.
O brilho das escamas daqueles que o cercam
não consegue dissuadir nosso olho.
Somente o seu negror clama, apela.
Mesmo entre os negros, ele é o mais negro:
nenhuma luz o ofusca).
 
O discurso é invertebrado,
mas múltiplo e severo:
a pontaria e a rapidez
de uma Kalashnikoff.
Há no escorrer das sílabas
algo de uma descarga de brigada ligeira:
Theirs not to reason why,
Theirs but to do and die:
Into the valley of Death.
 
 Numa mansão da avenida Kenneth Kaunda
dois homens se discutem, se descobrem:
desordenam.
O outro tem nome de pátria,
é calabrês, mas seu país é Barra do Piraí
As palavras chegam em látegos,
como as chuvas das monções.
Nenhuma pátria subverte
a água que rega o jardim dos homens.
(Somente raízes testemunham.)
 
 Into the valley of Death…
O do Princípio, o que dá nome à Rua:
a cabeça arrebentada
por algum hemisfério.
(Grande em demasia para caber o silêncio,
mínima para esconder o ruído
sinfônico das estrelas.)
Quanto ao do Fim, agarra-nos o braço,
perfura com o dedo o espaço.
Registra, em tom de segredo:
Há um vírus que não contamina
apenas a carne...
 
O saber é o maior pecado
entre todos pecados capitais.
(Maior que a soberba, a lúxúria,
a inveja. Até mesmo a bondade.)
 
Nos corredores domina o branco,
com astúcias do caçador de safári.
Desgoverna o búfalo no vale de Morogoro.
o leão na savana de Gorongosa:
a alça de mira posta,
ao dedo basta o leve toque.
Dixit De Gaulle:
A virtude do político
é a ingratidão.
 
Nem saraivada de granizos,
nem baterias antiaéreas:
o estrépito pousa no ar,
grito congelado de algum deus.
Nem o embate de corpos,
nem trovoadas
sobre os campos do Limpopo:
uma fenda, um fogo fátuo, uma ferida
há muito descrita por ele:
todas as águas correm para o Nascente:
não há ninguém para manejar comportas.
 
(Numa certa mansão
da Avenida Keneth Kaunda,
dois homens se confabulam:
buscam entrelinhas, espaços, equações
onde incrustar o átomo que se acomoda
após a refrega:
a curva de uma rede no terraço
de Barra do Piraí,
o sinuoso recuerdo
de uma Índia perdida.)
 
O estrondo é signo do desfazimento:
o grande abutre metálico
espatifa-se entre
persianas de nuvens.
Depois, o rol dos nomes,
ratos devoradores de arquivos,
miopia abnegada
de um olhar sem espelhos.
(Ponto final ou hífen?).
 
 Quatro séculos reúnem os dois cronistas:
o do Princípio e o do Futuro.
O primeiro segreda sucessos na Ásia:
Comentari Rerum Gestarum in India.
O segundo, decifra descaminhos na África
que se limita pelo Cabo:
 
o das Tormentas.

 
(No aquário, o pequeno tubarão
insinua-se entre algas.
As borbulhas ascendem em ritmo contínuo:
é o mais negro
entre os negros).

 

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